sábado, 10 de março de 2018

Someone's Watching Me, John Carpenter, 1978



You got too close

Logo a seguir a Halloween, e antes de The Fog (1980), John Carpenter rodou dois filmes para televisão. Someone’s Watching Me!, ainda em 1978 (foi exibido cerca de um mês depois da estreia em sala de Halloween) e Elvis, em 1979. Por vezes nota-se a tendência de “desconsiderar” um pouco estas obras televisivas de Carpenter (que, de resto, não seriam as últimas), e de as ver como “apontamentos” marginais à sua obra cinematográfica. O que é, ou pode ser, bastante injusto – como será evidente a propósito de Someone’s Watching Me!, que para além de ser um excelente filme mantém relações estreitas (estreitíssimas) com a filmografia “canónica” de Carpenter, a que já existia em 1978 e a que estava ainda por vir.

Claro que a primeira e neste contexto mais superficial observação permitida por Someone’s Watching Me! é dizer que a televisão mudou muito nestes últimos trinta anos. É fácil esquecer que estamos a ver “televisão”, a tal ponto a “mise en scène” de Carpenter se impõe a todos os constrangimentos, mais ou menos estereotipados, que a tradição diz que um “telefilme” impõe. Há aqui tanto cinema (e tanto Carpenter) como tanto cinema (e tanto Hitchcock) havia nos episódios de Hitchcock Presents.

E não nos lembramos de Hitchcock ao acaso, bem pelo contrário. Halloween, disse-o Carpenter, fora um filme gerado sob o signo e a inspiração de Psycho. Someone’s Watching Me! aprofunda, a um ponto porventura decisivo (no sentido em que Carpenter raramente terá, no futuro, sentido a necessidade de a ele voltar), uma relação com Hitchcock e com o seu cinema. Se Halloween era Psycho, Someone’s Watching Me! é Rear Window (as janelas, o voyeurismo, a devassa da intimdade) e Vertigo (a vertigem, o abismo e a atracção por ele). A própria heroína, Lauren Hutton, tem uma “allure” evidentemente hitchcockiana, não longe de uma Tippi Hedren por exemplo, sendo também, é certo, um “prolongamento” da Jamie Lee Curtis de Halloween: Leigh Michaels chama-se a personagem de Hutton, nome que ecoa tanto a actriz de Halloween (Lee=Leigh) como o seu “monstro” (Michael Myers). E como Jamie Lee Curtis nesse filme, Lauren Hutton é aqui o retrato de uma mulher ameaçada que tem que lidar por conta própria com essa ameaça (masculina), depois de todos os homens terem, de uma maneira ou doutra, revelado a sua falência (e não será apenas por uma questão de “sex politics” reaccionária que a outra mulher do filme, Adrienne Barbeau, se apresenta desde o princípio como lésbica).

O princípio “funcional” de Someone’s Watching Me! é uma espécie de inversão do de Rear Window. Estamos agora do outro lado da janela, do outro lado da mira telescópica. Os planos subjectivos do início, quando vemos a fachada do prédio e o interior do apartamento de Hutton pelo óculo do “voyeur”, são perfeitamente claros: James Stewart é aqui o “vilão”, sendo a protagonista talvez a “rapariga do torso” que se via em Rear Window e que, em vários desses planos, Lauren Hutton tanto faz lembrar. Não estamos só do outro lado da janela, estamos também no ponto de mira da “câmara-falo” como era a de Stewart, e portanto numa dimensão absolutamente feminina – a sensação de “violação” é permanente (e explicitamente citada), e exposta de maneira genial naqueles planos do apartamento de Hutton com as amplas janelas envidraçadas, sinal de uma fragilidade e vulnerabilidade ao olhar alheio. Não estamos a ver, estamos a ser vistos, a fachada do prédio em frente não é um domínio da curiosidade, é um domínio da ameaça.

Este problema da “visão” surge no filme ainda de outra maneira. Lá para o final, quando todos os homens (o namorado e os polícias) julgam, depois de identificado o primeiro suspeito, que a história está encerrada, e que Hutton está apenas psicologicamente debilitada (que está, por assim dizer, com “visões”), ela insiste que alguma coisa não está bem. Mas como convencer os outros de que a sua “visão” é a certa? Qual é a fronteira da paranóia? Duas coisas absolutamente carpenterianas, sublinhadas na fabulosa cena da inscrição feita nos vidros embaciados do chuveiro: “no one believes you”. Entre tantos outros, é já They Live que se anuncia: vê-se aquilo em que se acredita, ou acredita-se naquilo que se vê?

Em rima com a história “sentimental” da protagonista – mulher que se muda para Los Angeles por causa de um desgosto amoroso, que rechaça o homem que faz os avanços mais directos (o colega de trabalho), e que só fica com aquele que escolhe (aquele para quem “avança”, literalmente, pelo movimento de câmara na cena do bar) – Someone’s Watching Me!, com alguma perversidade (talvez se pudesse dizer hitchcockiana), é uma historia sobre uma mulher na sua intimidade doméstica. É perverso, porque aquilo que interessa ao “voyeur” é aquilo que a câmara de Carpenter mais mostra: Lauren Hutton no apartamento, a sair do banho e a entrar no banho, a vestir-se e a despir-se, a trabalhar e a ouvir música, a jantar ou a conversar. Um quotidiano em lenta transformação, da mera irritação pelas primeiras chamadas telefónicas inconvenientes ao puro terror do último terço do filme (também podemos ver Someone’s Watching Me! como um filme sobre a “disruption” da vida privada). O azar do “voyeur” é que esta mulher tem, como o namorado insinua, “problemas” com a intimidade. Não tolera que se cheguem muito próximo. Quando o “voyeur”, depois daquele plano muito Vertigo, se precipita pela janela abaixo, talvez ainda tenha ouvido a explicação do erro que cometeu: “you got too close”.


LMO