sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Boy Meets Girl, 1984; Mauvais Sang, 1986




Henri Langlois dizia que o génio de Godard estava na "mistura", no "mixage", e isto, que não sendo o mesmo que dizer "montagem" mas forçosamente englobando uma ideia lata de montagem, é uma muito boa maneira de definir aquilo que Godard nunca deixou de fazer: pegar em muitos elementos diferentes, baralhá-los, colá-los, misturá-los, e chegar a alguma coisa - como naqueles planos em que a imagem vem dum sítio, o som doutro, o texto ainda doutro - que ultrapassa a soma dos elementos misturados e existe muito para além do carácter remissivo e referencial. Encontramos virtudes semelhantes em Léos Carax, também ele um pequeno génio do "mixage", um dos mais tardios mas também mais legítimos "filhos" da "nouvelle vague", e a mais bem sucedida aproximação a um "clone" de Godard que já existiu. Por certo - e como muito bem se vê nestes seus dois primeiros filmes agora repostos - um dos últimos momentos em que foi possível jogar com a herança da "nouvelle vague" e isso ser uma coisa estava na massa, na matéria, no ("mauvais") sangue, antes de tudo se tornar nostalgia de "bibelot" como sucede, por exemplo, em Christophe Honoré. Podia-se até defender que "Paixões Cruzadas" e "Má Raça", filmes de 1984 e 1986 respectivamente, não são "nouvelle vague" tardia, antes o fecho tardio da "nouvelle vague", os últimos filmes "nouvelle vague" antes da pedra tumular que, no fim da década, o próprio Godard lhe erigiu com o filme a que adequadamente chamou "Nouvelle Vague". De resto, façamos contas: em 1984 estávamos mais perto do "À Bout de Souffle" (24 anos) do que hoje estamos destes primeiros filmes de Carax...

24 anos era também a idade de Carax quando realizou "Paixões Cruzadas" (ou no muito melhor título original, "Boy Meets Girl"). Ainda hoje, quando se reencontra aquela entrada com uma voz "off" monstruosa a recitar Céline (o mesmo Céline, o da "Morte a Crédito", que por coincidência também abre em "off" as "Recordações da Casa Amarela" de César Monteiro...), e depois a primeira canção que se ouve é uma "cover" de Gainsbourg, um "mixage" que imediatamente lança o filme sob os signos da "maldição" e da "decadência", ainda hoje, dizíamos, continua a ser uma das mais poderosas primeiras obras das últimas décadas. É curioso que à época se tenha criticado a "falta de personalidade" de Carax, insistindo no carácter "imitador" do filme e em tudo o que ele ia buscar aos mais velhos. É curioso porque, revisto hoje, no conhecimento da obra futura de Carax, o que impressiona é a quantidade de ecos, de manias, de idiossincrasias e recorrências que já aqui se manifestavam e voltaram a manifestar-se depois. Até no recente "Holy Motors", feito quase trinta anos depois deste, e que se calhar é, de todos os filmes que Carax fez entretanto, aquele que mais relaciona com "Paixões Cruzadas". A mesma estrutura esguia, feita de encontros e episódios não explicados, uma atmosfera que parece futurista sem nenhum sinal evidente de futurismo (e que será mais evidente em "Má Raça", filho incestuoso dum encontro entre o "Alphaville" de Godard e o "Fahrenheit 451" de Truffaut), uma noite parisiense singularmente abrasiva e granulada, filmada a preto e branco numa espécie de romantismo desolado a que apetece chamar - depois do momento com uma canção dos Dead Kennedys - "post-punk". Aliás, rever nexte contexto o também muito jovem Denis Lavant, que depois esteve em todos os filmes do cineasta e se tornou o seu "actor-fetiche", é perceber que ele era o Léaud de Carax, sim, mas um Léaud "misturado" com um anti-herói "punk" (digamos, um Léaud "post-Sid Vicious"), investido do estigma "proletário" de um Jean Gabin e carregando o "pathos" de um Lon Chaney, "homem das mil caras" como de resto "Holy Motors" tão perfeitamente evocaria. Quer em "Paixões Cruzadas" quer em "Má Raça" as cenas mais longas - e de certo modo as cenas centrais - são as extensas cenas de diálogo e cerimonial entre o "boy" (sempre Lavant) e a "girl" (Mireille Perrier no primeiro filme, Juliette Binoche no segundo), quase tornando possível atestar que o coração do cinema de Carax nasceu naquela sequência de "À Bout de Souffle" com Belmondo e Jean Seberg fechados no quarto, enrolados e a citar Faulkner. Mireille Perrier, de resto, se a dada altura aparece com o corte de cabelo Seberg, tem a cara chapada de Anna Karina, parecença fisionómica que Carax acentua ao filmá-la nalguns grandes planos que se diriam saidos do "Vivre sa Vie".

Em parte, repete isso com Binoche em "Má Raça", mas agora a cores. É um filme onde a presença dos velhos (Michel Piccoli e Serge Reggiani, ambos transportando imenso "mundo") lança a questão, meramente esboçada em "Paixões Cruzadas", das heranças, dos pais e dos filhos, do que se transmite de uns para os outros. Não por acaso, no ambiente vagamente "fc" que é o do filme, a "transmissão" é um tema central: há um virus a dizimar a humanidade, um virus que ataca "os amantes que fazem amor sem sentimento", e se à época (em 1986) se viu aqui uma metáfora da Sida hoje a relação com a doença parece meramente instrumental. Também na época se viu no filme uma abordagem do tema da "herança" como um "fardo" (Daney escreveu isso, então, no Libération), como se "Má Raça" fosse um filme para "matar o pai" ou, então, para se deixar matar por ele - que é possivelmente a moral da história. Belo e inquietante, é um filme muito do seu tempo, e um filme feito para, pelo menos, estar à altura do pai - e na sua estrutura feita de fragmentos e associações livres, "slapstick" e "non sequitur" incandescentes, nunca nenhum filme se mediu tanto e tão bem com os "Godards 80". Mas também é o filme onde se exprime plenamente um desejo de recuo no tempo, uma atracção pelo "primitivismo" (também já esboçada em "Boy Meets Girls", onde alguns planos dão inaudita atenção às passadas de Denis Lavant) e pelo cinema como máquina destinada primordialmente a registar e decompor o movimento e a acção. E é por isso que que lá está, numa das mais soberbas cenas que Carax filmou (aquela que Noah Baumbach citou em "Frances Ha"), o alucinante "travelling" sobre Denis Lavant a correr, dançar e gesticular rua abaixo ao som do "Modern Love" de Bowie. Em "Holy Motors", vinte e seis anos depois, associaria - "misturaria" - isto com Marey e com os dispositivos de "motion capture" digital, num "raccord" tão megalómano como o osso de Kubrick no "2001", a fazer a ponte entre extremidades "civilizacionais".

É a "odisseia" do cinema de Carax: redescubram-se então estes dois momentos iniciais, dois dos melhores e mais belos filmes dos anos 80, em qualquer quadrante.


LMO

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

M, Joseph Losey, 1951



Seymour Nebenzal fora um dos produtores mais importantes da Alemanha de Weimer, estando por trás de alguns títulos lendários desse período, como Die Buchse der Pandora (entre outros Pabst), Mennschen am Sonntag, e os dois últimos filmes alemães de Fritz Lang (em simultâneo os seus dois primeiros filmes sonoros), M e Das Testament des Dr Mabuse. Em 1933, como tantos outros alemães, teve que sair do país, e estabeleceu-se em França, onde ao longo da década de 30 produziu vários filmes maioritariamente realizados por outros emigrados alemães - como Robert Siodmak ou Max Ophuls, com quem repetidamente colaborou nesse período. Com a França ocupada pelos nazis em 1940, fez de novo as malas, agora para os Estados Unidos e para Hollywood, onde se estabeleceu como produtor independente e continuou a trabalhar com emigrados alemães, nomeadamente Edgar G. Ulmer e Douglas Sirk, de quem produziu Hitler's Madman e Summer Storm. Mas a vida de produtor independente na Hollywood daqueles tempos era difícil, e Nebenzal nunca conseguiu replicar o sucesso dos seus tempo alemães ou franceses. Lembrou-se a certa altura de tirar um coelho da cartola: o M de Fritz Lang, que se estreara em 1931 e do qual ainda tinha os direitos. Propôs o "remake" a Lang, que como sabemos também já estava havia muito tempo em Hollywood, mas Lang, se não recusava "refazer" filmes de Renoir (Scarlet Street e Human Desire), torcia o nariz ao "remake" de filmes seus, e disse que não. Nebenzal não desistiu e resolveu entregar o projecto a Joseph Losey, então no início da carreira mas bem lançado por três títulos sonantes, The Boy with Green Hair, The Lawless e The Prowler. Do ponto de vista comercial, a aventura não correu bem. M foi a última produção americana de Nebenzal (que só voltaria episodicamente à actividade vários anos depois, e já de regresso à Alemanha), e o último filme que Losey completou nos Estados Unidos - ainda neste ano de 1951 seria denunciado como comunista pela Comissão de Actividades Anti-Americanas, forçado a abandonar o filme em que trabalhava (The Big Night) e a exilar-se na Europa.

Esta introdução serve para salientar três aspectos fundamentais deste M de Losey. A questão do "remake", o facto de se tratar de uma produção independente, e o clima de paranóia provocado pela caça às bruxas comunistas que o famigerado Senador Joseph McCarthy então animava. Este é o contexto do filme de Losey, como se ele já previsse o que lhe ia acontecer. De resto, a palavra "comunista" ouve-se no filme (e não em tom lisonjeiro), e no final o discurso do advogado "oficioso" do criminoso tem uma incidência "social" muito mais forte do que no filme de Lang, fala de pobrezas, roubos e desigualdades, vira a questão da culpabilidade para o lado da "sociedade". Não por acaso, quando o filme termina e o genérico final cai sobre o derradeiro plano, aquele com quem ficamos é com o advogado, tombado morto no chão, esse advogado alcoólico caido em desgraça e notavelmente interpretado por Luther Adler que tivera, naquele discurso fortemente eivado de um sentido de justiça, um momento de redenção, e que é a personagem com quem a câmara de Losey pode ter alguma empatia, totalmente impossível quer com os polícias, quer com a associação de malfeitores, quer com o criminoso (um espantoso David Wayne) que aqui está no lugar de Peter Lorre.

Mas deixemos o final do filme e voltemos ao princípio, porque ele nos dá, de maneira tremendamente sintética, alguns dos eixos mais importantes deste "remake". Aquele "pré-genérico", com o cabeçalho do jornal ("procura-se assassino de crianças"), depois o movimento de câmara para dentro da carruagem, os vários passageiros cujos rostos nunca vemos (com toda a inquietação decorrente: o assassino pode ser qualquer um), e depois a carruagem em movimento deixando ver, no horizonte, a paisagem urbana de Los Angeles. Logo a seguir, o genérico é acompanhado de cenas curtas, mostrando o assassino e as suas presas, planos sempre elípticos mas sugestivos da maior perturbação (inclusive sexual, como na cena do bebedouro). É muito raro, no cinema americano da época, este grau de sugestão da violência sexual e pedófila. Diga-se, de resto, que oito estados americanos proibiram o filme, com base nesta violência e nas suas (bastante óbvias) conotações, bem mais explícitas do que no filme de Lang. Mas, sobretudo, a cidade: ao estúdio do M original, produção opulenta e plena de recursos, esta versão "low budget" contrapõe as armas (mais baratas) de que pode dispôr. A exploração dos décores, urbanos e realistas, da cidade de Los Angeles, sobretudo dos seus subúrbios algo degradados tanto arquitectonicamente como socialmente, algo que, em termos políticos, parece plenamente coerente com o posicionamento de Losey. O realismo desta versão, a troca do estúdio pela rua, é uma das suas forças, ao mesmo tempo que ilustra um aspecto fundamental da "independência" americana, ser um contraponto à "fábrica de sonhos" hollywoodiana. Convém notar, também, que umas das sequências mais espectaculares deste M decorre num célebre edifício de Los Angeles, o Bradbury Building, cujos elaborados interiores mais do que uma vez seriam aproveitados pelo cinema (mais notavelmente, pelo Blade Runner de Ridley Scott, trinta anos depois).

E só dez anos depois o cinema americano teria um personagem como o psicopata deste filme, no corpo do Norman Bates do Psycho de Hitchcock. Até fisionomicante David Wayne aponta mais para Anthony Perkins do que para Peter Lorre - e há aquela cena, com a fotografia da mãe, a sublinhar a justificação psicanalítica das acções da personagem. O seu monólogo, no final, consegue a proeza de ser tão intenso como o de Lorre no original, sendo no entanto muito mais seco e muito mais frio, sem aquela piedade que o "expressionismo" de Lorre não deixava de convocar (Lorre tornava-se uma "criança", Wayne fica sempre só um adulto regressivo, não exageramos se dissermos que é ainda mais perturbante). De qualquer modo, cotejar os dois M não deixa de ser um exercício inevitável para quem tiver bem presente na cabeça o filme de Lang - que perceberá como, por exemplo na cena inicial com o vendedor de balões, totalmente decalcado de Lang, a découpage segue, com uma fidelidade incrível, o que Lang fizera 20 anos antes.

Filme surpreendente, o M de Losey é dos objectos mais singulares do cinema americano dos anos 50.

LMO