domingo, 3 de maio de 2015

O Gebo e a Sombra



Terá dito Oliveira, conforme citado algures, que foi em resposta a uma sugestão de que fizesse “um filme sobre a pobreza” que se lembrou de adaptar O Gebo e a Sombra de Raul Brandão. A “pobreza”, e o seu tema associado, o “dinheiro”, já tinham visitado, mais este do que aquela, a sua antepenúltima longa, Singularidades de uma Rapariga Loura (a partir de Eça, mas com a moeda convertida em euros); e havia uma espécie de pobreza, a pobreza espiritual de um mundo falho de imaginação, excessiva e tristemente real, no filme que se lhe seguiu, O Estranho Caso de Angélica, onde tudo era tão cinzento que o protagonista preferia a fantasia mórbida, mas mágica e promissora, que vinha com o sorriso de uma morta. São dois filmes excelentes, como excelente é O Gebo e a Sombra, que cruza estes títulos anteriores: fala do dinheiro - “o dinheiro nunca se perdoa”, frase escrita há quase um século, mas tão terrível quando pronunciada aqui e agora, em Portugal 2012 - e da sua escassez, mas também da irredimível pobreza de um mundo “aquém”, de um mundo “encolhido”, que faz pensar imenso no Cavalo de Turim de Tarr e no que teria acontecido àquele pai e àquela filha depois de já não haver luz, nem espaço, nem nada.

Neste mundo dos pobres tal como O Gebo e a Sombra o desenha, também não há luz (sempre na penumbra, noites e dias sucedendo-se sem distinção) nem espaço (tão exíguo que não permite mais do que uma meia dúzia de posições de câmara diferentes). Mesmo se plasticamente é notável, uma coisa belíssima: a fotografia de Renato Berta faz maravilhas com a iluminação e com essa sombra em todos os sentidos omnipresente, e não exageramos se dissermos que desde que o cinema se tornou assunto essencialmente “digital” ainda não tínhamos visto uma imagem assim, tão rica nas temperaturas e nas texturas, tão complexa na própria organização e definição do espaço (aqueles planos em que duas personagens dialogam de frente para a câmara, e há uma terceira a ouvi-las na penumbra da profundidade de campo)-

A “sombra” de Gebo (Michael Lonsdale), modesto e dúctil cobrador de uma empresa qualquer, é o seu filho, desaparecido há oito anos, em busca de outra vida para além da pobreza, mas presumivelmente também para além da aceitação da pobreza como “moral”, que Gebo professa dir-se-ia religiosamente (ele que diz que um homem pode ser honesto e honrado, ou então “tentar enriquecer”). Essa sombra materializar-se-á quando o filho (Ricardo Trêpa) torna a casa, pelo tempo suficiente para se revelar - numa figura com o seu quê de nietzscheano - a antítese moral do pai. Mais ainda do que o roubo, é o seu discurso brutal, a rebentar qualquer moralidade, perante aquela atónita plateia (a família e os vizinhos) de gente que tem na pobreza um ideal de honradez, a cena mais impressionante e violenta de todo o filme, anunciada pela gargalhada, “diabólica”, do momento do seu regresso. Violenta também pela ambiguidade da sua crítica à docilidade da pobreza e dos pobres (ele não vem só de outra vida, traz também outra voz), ambiguidade reforçada ainda pelo facto de a personagem ser interpretada por Trêpa, que tem sido, de modo mais ou menos evidente consoante os casos, o “duplo” de Oliveira dentro dos seus filmes. Mas a história do filme - que termina no final do terceiro dos quatros actos da peça de Brandão, e é genial que o faça - é a da transformação de Gebo na sua própria sombra. O momento em que a policia chega é o único momento em que a luz do sol penetra naquele tugúrio, e portanto o único momento em que Gebo, de frente para a luz do sol, projecta uma sombra. Torna-se nela, na dúvida, angustiante, paralisante (como o “paralítico” que imediatamente imobiliza a imagem e se mantém por grande parte do genérico de fecho), de que tudo terá sido “inútil”, de que sempre foi pobre e podia não ter sido, de que a pobreza pode ser uma mentira tão ilusória como a abastança, de que havia talvez uma outra vida algures, para ele, para a mulher (Claudia Cardinale), para a filha-nora (Leonor Silveira). É um final terrível, terrificante - decididamente, nunca se sai a rir de um filme de Oliveira.


Mas sorri-se bastante, ao longo da hora e três quartos da sua duração. Pela delicadeza e graça com que Oliveira condimenta a austeridade da sua mise-en-scène, e pela delicadeza, em estado de graça, do seu sexteto de actores - faltava mencionar Luís Miguel Cintra e Jeanne Moreau, que chegam para saborear o gosto do saké, perdão, do café quente, na maravilhosamente amena cena de conjunto que antecede o trauma que por sua vez prepara a tragédia. A tragédia do bas fonds: discutir-se-á se Brandão está mais próximo de Gorki do que Oliveira está de Renoir, mas Gebo e a Sombra também lembra bastante a adaptação do russo que o francês fez nos anos 30, Les Bas Fonds e que Oliveira certamente viu - o seu filme parece que lhe “responde”. Em todo o caso, um filme magnífico, um grandíssimo Oliveira. Chapéu, Sr. Manoel.

LMO