segunda-feira, 27 de abril de 2015

Singularidades de uma Rapariga Loira



Como que a provar que não é por se chegar aos cem anos que deixa de haver coisas novas para fazer, Manoel de Oliveira reservou uma estreia para o filme do seu centenário (estava em plena rodagem quando a efeméride se perfez): atirar-se a uma adaptação de Eça de Queiroz, filmando o conto homónimo do escritor. Divertiu-se bastante com a ironia de Eça, assim como o filme, ele próprio, "diverte".

Divertiu-se o suficiente, em todo o caso, para fazer sua a ironia de Eça, e para a transformar numa ironia que por vezes parece quase auto-referencial e levar em conta o conhecimento que o espectador tem (ou devia ter) da sua obra. Por exemplo: aquelas cenas e aqueles planos das janelas (tudo fabuloso), em falsos campos/contracampos de 180º (porque na verdade, e a acreditar nos "raccords" de olhar, há uma ligeira diagonal, é um frontalidade vista, digamos, um pouco de lado - ironia, ironia), lembram irremediavelmente certas cenas e certos planos do Amor de Perdição, o filme onde Oliveira adaptou o "outro" escritor do século XIX português. Assim como, apenas meio a brincar, se podia resumir o essencial da intriga de Singularidades de uma Rapariga Loira como um Aniki Bobó entre adultos da baixa lisboeta - o Carlitos desse filme queria comprar a boneca que viu na montra para a oferecer à namorada, o Macário (Ricardo Trepa) deste filme quer, no fundo, comprar a boneca (Catarina Wallenstein ou, salvo seja, a sua personagem, Luísa) que viu na janela para a oferecer a si próprio como sua namorada. Ironia, ironia.

E mais ironia ainda, que neste filme é interminável (e por falar em "interminável": são apenas 64 minutos, coisa para dar que pensar aos "humoristas" e outros engraçados que andam há anos a fazer a mesma piada com a duração dos filmes de Oliveira - isto, claro, partindo do pressuposto que eles pensam). Singularidades podia ser apresentado como uma peça "pedagógica" de introdução ao método, ou aos métodos de Oliveira. Começa na adaptação propriamente dita, na maneira como Oliveira transpõe os códigos, as preocupações e, muito importante, a linguagem da boa sociedade lisboeta de XIX para uma Lisboa aparentemente contemporânea. Mas só "aparentemente", e só como ambiguíssimo "efeito de real" (nas cenas de exteriores, ou no ruído em "off" do trânsito). Porque depois, dentro desta Lisboa assim sinalizada, as personagens vivem numa "bolsa", num prolongamento da ordem e das ordens de outros tempos. Algo de suficientemente credível se pensarmos que tais "bolsas" existem na realidade, pelo menos suficientemente credível para que "in extremis" fique em suspenso o mergulho no total artificialismo, trocado por algo ao mesmo tempo mais simples e mais complexo: digamos que um curto-circuito no naturalismo e na sua facilidade de reconhecimento. Para um efeito, digamos outra vez mas não pela última, irónico (personagens de XIX na Lisboa de XXI), mas mais do que isso para isolar o que de facto interessa a Oliveira: o "teatro social" (e quando escrevemos isto ocorre-nos outro par para este filme, A Carta e a transposição do drama de Madame de La Fayette para um mundo com automóveis, a Expo 98 e Pedro Abrunhosa).

"Pedagógico", ainda, pela forma exemplar, e jubilatória, como Oliveira multiplica (e se for caso disso trava, inflecte) as vacilações do registo dramático. Dos planos do comboio com Trepa e Leonor Silveira, que em absoluta e solene gravidade lançam os "flash-backs" em que a história é contada, ao insidioso humor que depois percorre a narração propriamente dita (tão desconcertante é aquela pequena dança de alegria de Trepa como a personagem do Tio, que Diogo Dória, actor bem versado na arte e nos modos oliveirianos, equilibra sempre na fronteira entre seriedade e irrisão - e com um porte e um recorte que, se for disparate paciência, até nos lembra António Silva). Mas também todos aqueles momentos digressivos, "didácticos", que aparecem em tantos filmes de Oliveira (quem não se lembra da lição sobre a guitarra portuguesa em A Caixa?...) e que têm ocasião de nascer a partir de uma visita de Trepa às instalações do Círculo Eça de Queiroz... Um pequeno "abismo", tratando-se de um filme adaptado de Eça, mas não é o único se pensarmos que há ocasião para uma leitura de Alberto Caeiro (por Luís Miguel Cintra, em nome próprio, mais um curto-circuito aplicado na relação entre real e representação...), e que o canto do "Guardador de Rebanhos" (o XXXII) lido por Cintra ("existir claramente / e saber fazê-lo sem pensar nisso") parece estar a falar de Oliveira, e mais ainda que se podem notar rimas com o poema em certos diálogos ("clara e fresca" é como Macário define Luísa, mas não é a única possível rima).

Singularidades revê um tema favorito de Oliveira (a paixão, íamos a escrever com maiúscula e se calhar ficava bem) em chave irónica e alusiva (ah aquele leque que tanto cativa Macário, menos por Macário ser um fetichista do que por o leque ser a imagem do irrepresentável, do "obsceno" em sentido talvez mais etimológico do que moral). Mas também é um filme, e talvez mais do que qualquer outro de Oliveira, sobre um "problema económico" (por alguma razão se fala tanto nos "euros" que Oliveira, em efeito realista que soa sempre a anacronismo, insistiu em actualizar). Sobre a dificuldade de trabalhar, de ganhar dinheiro, de ter dinheiro.


Sobre o que fazer com o dinheiro que se tem, e sobretudo com o que se não tem. Sobre uma "moral materialista", sobre o trabalho e a cleptomania, a honradez e o arrivismo. Resistimos à tentação de dizer que Oliveira, no que seria a sua suprema ironia, constrói aqui um discurso sibilino sobre o estado do cinema - português? - mas lá que a ideia nos passa pela cabeça passa. De qualquer modo ninguém sai a rir de um filme de Oliveira. Quando ele resolve apagar as luzes não há nada que mitigue a escuridão. Num derradeiro golpe de rins, Singularidades converte-se no L'Argent de Oliveira, e o plano final encerra a pobre Luísa num negrume tão denso, tão desesperado e tão misterioso como aquele a que Bresson votava o protagonista do seu L'Argent.

LMO