sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Sudden Impact



De toda a série com a personagem de Dirty Harry, Sudden Impact foi o único filme em que Clint Eastwood chamou a si a realização. Este foi o quarto episódio (depois de Dirty Harry, Magnum Force e The Enforcer, respectivamente dirigidos por Don Siegel, Ted Post e James Fargo) e a Dirty Harry Clint só voltaria mais uma vez, em 1988, com The Dead Pool, onde a realização vinha creditada ao seu velho comparsa Buddy Van Horn (e que é também, como nos parece dificilmente contestável, o mais irrelevante da série, simples adenda rotineira ao percurso de uma personagem a que Clint pouco ou nada tinha já a acrescentar, e tanto assim que não lhe voltou depois a pegar).

Chamar a atenção para este ponto (a realização em nome próprio) não implica a descaracterização de qualquer um dos outros títulos, porque é evidente que Dirty Harry foi, desde sempre, uma personagem fortemente controlada por Eastwood (que, de resto, é o único traço de união numa série de filmes que nunca teve duas vezes o mesmo realizador). Implica, isso sim, um reforço da dimensão especial, ou especialmente preparada, de Sudden Impact, confirmada aliás pelos relatos da sua demorada gestação e da apertada supervisão que Eastwood exerceu sobre a escrita do argumento. Num certo sentido, Sudden Impact é a despedida de Dirty Harry, que no fim desaparece na sombra de um mundo tornado cada vez mais grotesco e distorcido, sujo e psicopata (e é por passar por cima disto, como se nada fosse, que The Dead Pool parece a tal adenda insignificante).

Escreveu Noel Simsolo, no seu livro sobre Eastwood, que Sudden Impact era o filme em que o cineasta mais se tinha preocupado em aprofundar tudo o que o separava da personagem de Dirty Harry. Parece-nos uma boa maneira de ver as coisas, e de definir o “projecto” de Sudden Impact. Mais ainda, acrescentamos, um filme em que essa “separação” se processa por tangentes auto-paródicas, como se se tratasse de filmar Dirty Harry enquanto personagem “mitológica” e irreal – por exemplo a cena no “diner”, dos contrapicados grandiloquentes com que Clint se filma à tirada sobre os seus amigos Smith & Wesson (que o realizador imaginava ser a que fosse “pegar”; mas não, o que “pegou” foi o “make my day” que se ouve perto do fim). Toda a primeira parte de Sudden Impact (até ao momento em que Harry deixa São Francisco e vai para a cidadezinha onde o resto do filme se desenrola) parece pensada de maneira a criar um “excesso” na personagem. Um excesso de presença, um excesso “iconográfico”, um excesso de “aura”. Ao ponto de se chegar mesmo a uma espécie de absurdo, de que é exemplo a cena da “chantagem” com o velho mafioso, que morre por acção directa das palavras de Harry, como se tudo nele se tivesse tornado tão “excessivo” que até as suas palavras produzissem um efeito mortífero. Uma personagem em excesso é uma personagem que está a mais – como bem percebem os seus superiores que, cansados da tendência de Harry para criar um novo sarilho a cada resolução de outro sarilho, o mandam embora por uns tempos, umas “férias à força” a ver se as coisas (incluindo Harry) se voltam a equilibrar. É humilhante, mas a humilhação é o outro lado da auto-paródia, já estava presente no filme (a cena no tribunal, a primeira com Harry, onde o réu é mandado em liberdade por irregularidades processuais, os insultos e o “you’ve got class, Harry”) e voltará a estar (por exemplo, o cão, “indomável” no que à satisfação de necessidades fisiológicas diz respeito, que a certa altura o acompanha).


O cão, e já que falámos dele, que é o símbolo mais visível da espécie de mergulho na animalidade (“com animais nunca”) do mundo da segunda parte, suja, fria, psicologicamente viscosa, quase um barroquismo psicopata que não está longe, em certos momentos (a ideia de um universo deformado, para lá do espelho), dos “bas-fonds” de algum Lynch. À personagem “em excesso” da primeira parte corresponde, na segunda, uma humanidade “em defeito”. À criminalidade urbana de São Francisco (uma doença “social”) sucede-se a espiral psicopata (uma doença “mental”) do lugarejo. Nada é verdadeiramente reconhecível ou enquadrável, os pontos de referência estão corrompidos desde o princípio, as personagens são sombras maniqueístas, entidades puramente malévolas, um horror de comboio fantasma conduzido à sua feérica apoteose (a sequência final, com a feira e a roda). E tudo isto serve de cenário à aproximação entre Harry e aquela que ele era suposto, desde o princípio, perseguir e capturar: a personagem de Sondra Locke, prisioneira do seu irracional desejo de vingança (é, de resto, por ela que o filme começa, e ela é tão protagonista de Sudden Impact como Harry). O que perturba mais no relacionamento dos dois não é a história da atracção ou do amor que nasce entre eles; antes a entrega e o beneplácito de Harry à fúria vingativa e desequilibrada de Locke, a única coisa com que ele parece ser capaz de se relacionar num mundo definitivamente passado para além de todos os cânones de reconhecimento e empatia. No fim desaparecem ambos na noite: “exit Harry”, a partir de agora habitante de um mundo de sombras. Da “fúria da razão” à “doença da razão”, eis a história de Dirty Harry Callahan.

LMO

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Blow Up



Seria curioso averiguar, seriamente, os efeitos que o tempo operou sobre Blowup, um dos mais célebres, mas também um dos menos típicos, filmes de Michelangelo Antonioni. Seria curioso, sobretudo, averiguar de que forma resiste Blowup num tempo em que algumas das suas preocupações centrais se disseminaram por várias áreas criativas, com particular incidência nas chamadas “artes da imagem” (que não tratam, necessariamente, da imagem cinematográfica). O que há de mais forte em Blowup, ainda hoje (ou sobretudo hoje), é a sensação de que o filme marca um momento decisivo: a história do fotógrafo interpretado por David Hemmings pode simbolizar a história do momento em que o homem olhou para uma imagem e percebeu que ela não dizia assim tanta coisa (nem uma palavra, quanto mais mil) que ele pudesse perceber. O núcleo de Blowup é a história do confronto de um homem com uma imagem, tomada na mais simples das suas dimensões, a da sua materialidade – e tudo se perde, a dado passo, no mar de pontinhos pretos e brancos que são a única dimensão verdadeiramente concreta, palpável, da fotografia tirada por David Hemmings. Esses pontinhos, espécie de enorme labirinto apenas potencialmente representativo, acabam por ser, na sua “incontornável” verdade, a única verdade “incontornável” de qualquer imagem: sim, isto é uma imagem, até que ponto ela pode funcionar como revelação da realidade, eis o que permanece um mistério insolúvel. A trajectória fascinada e obcecada da personagem de Hemmings pode funcionar, a este nível, como crónica do momento em que se perdeu a espécie de “unidade primordial” entre uma imagem e o seu referente, ou melhor dizendo, do momento em que se ganhou consciência de quão ilusória era essa unidade. Noutros termos, é um pouco como naquelas célebres fotografias de “fantasmas”, que depois de reveladas mostram qualquer coisa que, em princípio, não devia “lá” estar.

O que aparece à personagem de Hemmings é um desses fantasmas. Mas aparece onde, na fotografia ou apenas na cabeça dele? Todo o filme tende para a confirmação de que o fantasma estava na cabeça dele, pois a imagem, afinal, não prova nada. E os mimos que aparecem no princípio do filme voltam no fim, com um simulacro de jogo de ténis, numa aparente confirmação de que “it’s all in the mind” – resposta relativamente apaziguadora para Hemmings, que até esboça um sorriso quando começa a ouvir o barulho da bola de ténis que não existe. Não existe? Existe, existe: como muita coisa o tenta explicar, desde os ensaios sobre a loucura aos ensaios de Cronenberg sobre a “virtual reality”, não há nada de mais verdadeiro do que o que acontece “in the mind”. De certa forma, o sorriso final de Hemmings é um sorriso triunfante: ele tinha razão.


Se calhar nada disto é muito “antonioniano”, se calhar nada disto são conclusões essenciais (ou sequer pertinentes) numa integração de Blowup na obra do cineasta italiano, e talvez tenham muito mais a ver com a história original de Cortazar (mesmo que o filme altere substancialmente) em que o argumento se baseia. Mas a verdade é que tudo isto se insere num contexto bastante caro a Antonioni, enquanto formulação temática: a “alienação”. Não é seguro que a costela moralista de Antonioni não tivesse pretendido, acima de tudo, chegar a uma espécie de “crítica social” – “swinging London”, cidade da moda em meados dos “sixties”, a juventude, os fenómenos “pop” da música à própria fotografia, o confronto entre uma urbanidade mais ou menos espumante e a dura realidade suburbana (o filme começa, não o esqueçamos, num ambiente fabril). Se o era, o mínimo que se pode dizer é que a história de Cortazar lhe forneceu uma maneira terrivelmente eficaz de o fazer. Vistas bem as coisas, há alguma coisa mais vazia do que a vida de Hemmings, ou de que esta Londres que em tantos planos parece pura e simplesmente desabitada? A futilidade reina em Blowup, por entre manequins e relíquias de idolatria "pop" (o pedaço da guitarra dos Yardbirds) , e o vazio cansado (que aparece estampado nos olhos e no rosto de David Hemmings, esse actor que teve o azar de não envelhecer tão bem como Terence Stamp) da personagem do fotógrafo é, afinal, o terreno propício ao nascimento de outra alienação, provocada pela fotografia que o obceca. Menos fútil? Nada o garante, bem pelo contrário – o círculo terrível de Blowup fecha-se nessa troca de uma alienação por outra. E é por isso que, no fim de contas, o último plano do filme talvez não signifique mais do que a aquisição de uma espécie de “sagesse” nihilista.

LMO