domingo, 3 de maio de 2015

O Gebo e a Sombra



Terá dito Oliveira, conforme citado algures, que foi em resposta a uma sugestão de que fizesse “um filme sobre a pobreza” que se lembrou de adaptar O Gebo e a Sombra de Raul Brandão. A “pobreza”, e o seu tema associado, o “dinheiro”, já tinham visitado, mais este do que aquela, a sua antepenúltima longa, Singularidades de uma Rapariga Loura (a partir de Eça, mas com a moeda convertida em euros); e havia uma espécie de pobreza, a pobreza espiritual de um mundo falho de imaginação, excessiva e tristemente real, no filme que se lhe seguiu, O Estranho Caso de Angélica, onde tudo era tão cinzento que o protagonista preferia a fantasia mórbida, mas mágica e promissora, que vinha com o sorriso de uma morta. São dois filmes excelentes, como excelente é O Gebo e a Sombra, que cruza estes títulos anteriores: fala do dinheiro - “o dinheiro nunca se perdoa”, frase escrita há quase um século, mas tão terrível quando pronunciada aqui e agora, em Portugal 2012 - e da sua escassez, mas também da irredimível pobreza de um mundo “aquém”, de um mundo “encolhido”, que faz pensar imenso no Cavalo de Turim de Tarr e no que teria acontecido àquele pai e àquela filha depois de já não haver luz, nem espaço, nem nada.

Neste mundo dos pobres tal como O Gebo e a Sombra o desenha, também não há luz (sempre na penumbra, noites e dias sucedendo-se sem distinção) nem espaço (tão exíguo que não permite mais do que uma meia dúzia de posições de câmara diferentes). Mesmo se plasticamente é notável, uma coisa belíssima: a fotografia de Renato Berta faz maravilhas com a iluminação e com essa sombra em todos os sentidos omnipresente, e não exageramos se dissermos que desde que o cinema se tornou assunto essencialmente “digital” ainda não tínhamos visto uma imagem assim, tão rica nas temperaturas e nas texturas, tão complexa na própria organização e definição do espaço (aqueles planos em que duas personagens dialogam de frente para a câmara, e há uma terceira a ouvi-las na penumbra da profundidade de campo)-

A “sombra” de Gebo (Michael Lonsdale), modesto e dúctil cobrador de uma empresa qualquer, é o seu filho, desaparecido há oito anos, em busca de outra vida para além da pobreza, mas presumivelmente também para além da aceitação da pobreza como “moral”, que Gebo professa dir-se-ia religiosamente (ele que diz que um homem pode ser honesto e honrado, ou então “tentar enriquecer”). Essa sombra materializar-se-á quando o filho (Ricardo Trêpa) torna a casa, pelo tempo suficiente para se revelar - numa figura com o seu quê de nietzscheano - a antítese moral do pai. Mais ainda do que o roubo, é o seu discurso brutal, a rebentar qualquer moralidade, perante aquela atónita plateia (a família e os vizinhos) de gente que tem na pobreza um ideal de honradez, a cena mais impressionante e violenta de todo o filme, anunciada pela gargalhada, “diabólica”, do momento do seu regresso. Violenta também pela ambiguidade da sua crítica à docilidade da pobreza e dos pobres (ele não vem só de outra vida, traz também outra voz), ambiguidade reforçada ainda pelo facto de a personagem ser interpretada por Trêpa, que tem sido, de modo mais ou menos evidente consoante os casos, o “duplo” de Oliveira dentro dos seus filmes. Mas a história do filme - que termina no final do terceiro dos quatros actos da peça de Brandão, e é genial que o faça - é a da transformação de Gebo na sua própria sombra. O momento em que a policia chega é o único momento em que a luz do sol penetra naquele tugúrio, e portanto o único momento em que Gebo, de frente para a luz do sol, projecta uma sombra. Torna-se nela, na dúvida, angustiante, paralisante (como o “paralítico” que imediatamente imobiliza a imagem e se mantém por grande parte do genérico de fecho), de que tudo terá sido “inútil”, de que sempre foi pobre e podia não ter sido, de que a pobreza pode ser uma mentira tão ilusória como a abastança, de que havia talvez uma outra vida algures, para ele, para a mulher (Claudia Cardinale), para a filha-nora (Leonor Silveira). É um final terrível, terrificante - decididamente, nunca se sai a rir de um filme de Oliveira.


Mas sorri-se bastante, ao longo da hora e três quartos da sua duração. Pela delicadeza e graça com que Oliveira condimenta a austeridade da sua mise-en-scène, e pela delicadeza, em estado de graça, do seu sexteto de actores - faltava mencionar Luís Miguel Cintra e Jeanne Moreau, que chegam para saborear o gosto do saké, perdão, do café quente, na maravilhosamente amena cena de conjunto que antecede o trauma que por sua vez prepara a tragédia. A tragédia do bas fonds: discutir-se-á se Brandão está mais próximo de Gorki do que Oliveira está de Renoir, mas Gebo e a Sombra também lembra bastante a adaptação do russo que o francês fez nos anos 30, Les Bas Fonds e que Oliveira certamente viu - o seu filme parece que lhe “responde”. Em todo o caso, um filme magnífico, um grandíssimo Oliveira. Chapéu, Sr. Manoel.

LMO

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Singularidades de uma Rapariga Loira



Como que a provar que não é por se chegar aos cem anos que deixa de haver coisas novas para fazer, Manoel de Oliveira reservou uma estreia para o filme do seu centenário (estava em plena rodagem quando a efeméride se perfez): atirar-se a uma adaptação de Eça de Queiroz, filmando o conto homónimo do escritor. Divertiu-se bastante com a ironia de Eça, assim como o filme, ele próprio, "diverte".

Divertiu-se o suficiente, em todo o caso, para fazer sua a ironia de Eça, e para a transformar numa ironia que por vezes parece quase auto-referencial e levar em conta o conhecimento que o espectador tem (ou devia ter) da sua obra. Por exemplo: aquelas cenas e aqueles planos das janelas (tudo fabuloso), em falsos campos/contracampos de 180º (porque na verdade, e a acreditar nos "raccords" de olhar, há uma ligeira diagonal, é um frontalidade vista, digamos, um pouco de lado - ironia, ironia), lembram irremediavelmente certas cenas e certos planos do Amor de Perdição, o filme onde Oliveira adaptou o "outro" escritor do século XIX português. Assim como, apenas meio a brincar, se podia resumir o essencial da intriga de Singularidades de uma Rapariga Loira como um Aniki Bobó entre adultos da baixa lisboeta - o Carlitos desse filme queria comprar a boneca que viu na montra para a oferecer à namorada, o Macário (Ricardo Trepa) deste filme quer, no fundo, comprar a boneca (Catarina Wallenstein ou, salvo seja, a sua personagem, Luísa) que viu na janela para a oferecer a si próprio como sua namorada. Ironia, ironia.

E mais ironia ainda, que neste filme é interminável (e por falar em "interminável": são apenas 64 minutos, coisa para dar que pensar aos "humoristas" e outros engraçados que andam há anos a fazer a mesma piada com a duração dos filmes de Oliveira - isto, claro, partindo do pressuposto que eles pensam). Singularidades podia ser apresentado como uma peça "pedagógica" de introdução ao método, ou aos métodos de Oliveira. Começa na adaptação propriamente dita, na maneira como Oliveira transpõe os códigos, as preocupações e, muito importante, a linguagem da boa sociedade lisboeta de XIX para uma Lisboa aparentemente contemporânea. Mas só "aparentemente", e só como ambiguíssimo "efeito de real" (nas cenas de exteriores, ou no ruído em "off" do trânsito). Porque depois, dentro desta Lisboa assim sinalizada, as personagens vivem numa "bolsa", num prolongamento da ordem e das ordens de outros tempos. Algo de suficientemente credível se pensarmos que tais "bolsas" existem na realidade, pelo menos suficientemente credível para que "in extremis" fique em suspenso o mergulho no total artificialismo, trocado por algo ao mesmo tempo mais simples e mais complexo: digamos que um curto-circuito no naturalismo e na sua facilidade de reconhecimento. Para um efeito, digamos outra vez mas não pela última, irónico (personagens de XIX na Lisboa de XXI), mas mais do que isso para isolar o que de facto interessa a Oliveira: o "teatro social" (e quando escrevemos isto ocorre-nos outro par para este filme, A Carta e a transposição do drama de Madame de La Fayette para um mundo com automóveis, a Expo 98 e Pedro Abrunhosa).

"Pedagógico", ainda, pela forma exemplar, e jubilatória, como Oliveira multiplica (e se for caso disso trava, inflecte) as vacilações do registo dramático. Dos planos do comboio com Trepa e Leonor Silveira, que em absoluta e solene gravidade lançam os "flash-backs" em que a história é contada, ao insidioso humor que depois percorre a narração propriamente dita (tão desconcertante é aquela pequena dança de alegria de Trepa como a personagem do Tio, que Diogo Dória, actor bem versado na arte e nos modos oliveirianos, equilibra sempre na fronteira entre seriedade e irrisão - e com um porte e um recorte que, se for disparate paciência, até nos lembra António Silva). Mas também todos aqueles momentos digressivos, "didácticos", que aparecem em tantos filmes de Oliveira (quem não se lembra da lição sobre a guitarra portuguesa em A Caixa?...) e que têm ocasião de nascer a partir de uma visita de Trepa às instalações do Círculo Eça de Queiroz... Um pequeno "abismo", tratando-se de um filme adaptado de Eça, mas não é o único se pensarmos que há ocasião para uma leitura de Alberto Caeiro (por Luís Miguel Cintra, em nome próprio, mais um curto-circuito aplicado na relação entre real e representação...), e que o canto do "Guardador de Rebanhos" (o XXXII) lido por Cintra ("existir claramente / e saber fazê-lo sem pensar nisso") parece estar a falar de Oliveira, e mais ainda que se podem notar rimas com o poema em certos diálogos ("clara e fresca" é como Macário define Luísa, mas não é a única possível rima).

Singularidades revê um tema favorito de Oliveira (a paixão, íamos a escrever com maiúscula e se calhar ficava bem) em chave irónica e alusiva (ah aquele leque que tanto cativa Macário, menos por Macário ser um fetichista do que por o leque ser a imagem do irrepresentável, do "obsceno" em sentido talvez mais etimológico do que moral). Mas também é um filme, e talvez mais do que qualquer outro de Oliveira, sobre um "problema económico" (por alguma razão se fala tanto nos "euros" que Oliveira, em efeito realista que soa sempre a anacronismo, insistiu em actualizar). Sobre a dificuldade de trabalhar, de ganhar dinheiro, de ter dinheiro.


Sobre o que fazer com o dinheiro que se tem, e sobretudo com o que se não tem. Sobre uma "moral materialista", sobre o trabalho e a cleptomania, a honradez e o arrivismo. Resistimos à tentação de dizer que Oliveira, no que seria a sua suprema ironia, constrói aqui um discurso sibilino sobre o estado do cinema - português? - mas lá que a ideia nos passa pela cabeça passa. De qualquer modo ninguém sai a rir de um filme de Oliveira. Quando ele resolve apagar as luzes não há nada que mitigue a escuridão. Num derradeiro golpe de rins, Singularidades converte-se no L'Argent de Oliveira, e o plano final encerra a pobre Luísa num negrume tão denso, tão desesperado e tão misterioso como aquele a que Bresson votava o protagonista do seu L'Argent.

LMO

terça-feira, 21 de abril de 2015

Estate violenta



Estate Violenta foi a segunda longa-metragem assinada por Valerio Zurlini. Permanece como um dos seus filmes mais famosos e o tempo mais não fez do que evidenciar algo que, à época, talvez não fosse tão claro: que Estate Violenta é uma obra-prima absoluta.

O "verão violento" referido pelo título é o de 1943, ano em que a Sicília e o sul de Itália foram invadidos pelas tropas Aliadas, naquilo que seria o início da "reconquista" da Europa. Foi também nessa altura, e em consequência destes acontecimentos, que Mussolini foi deposto e o fascismo italiano se começou a desmoronar - tempos depois, Mussolini, já completamente reduzido a um boneco nas mãos de Hitler, voltaria ao poder na república "fantoche" de Saló, mas isso já é outra história (e outro filme).

Estes acontecimentos estão no filme, e do mero pano de fundo a que parecem inicialmente reduzidos vão acabar por se tornar decisivos. É a guerra que vai definir os destinos (e a separação) das personagens de Trintignant e Rossi-Drago, como de certo modo fora já a guerra que os juntara (a personagem de Eleonora Rossi-Drago é viúva de um militar morto em combate). A articulação entre o contexto histórico e a narrativa propriamente dita, e a crescente influência do primeiro sobre a segunda, é mesmo um dos aspectos mais perfeitos da construção de Estate Violenta. Se – sequência do genérico inicial, com a chegada do barco que transporta um soldado, ou marinheiro, ferido – a guerra é logo dada como “sinal”, depois invade o espaço do filme (uma colónia balnear no norte de Itália, Riccione, e que está portanto longe da frente de batalha), irrompendo brutalmente em duas sequências, ainda na primeira parte: quando o grupo de amigos, numa festa, liga a rádio e em vez de música ouve o noticiário relatando a invasão Aliada; e depois, na praia, quando um avião alemão "tresmalhado" passa em voo rasante lançando o pânico entre os veraneantes. Sequências que para além de delinearem o enquadramento histórico da narrativa cumprem outra função, fundamental para os destinos do filme: a de deixar cada vez mais claro que aquele grupo de personagens (Trintignant e o seu alegremente fútil círculo de amigos) não pode fingir durante muito mais tempo que a guerra (bem como a convulsão política a ela inerente) não existe. Primeiro "ouve-se" a guerra (a rádio), depois "vê-se" (o avião), num crescendo que culminará com um terceiro momento: aquele em que se "experimenta" a guerra, quando o comboio em que viajam Trintignant e Rossi-Drago é bombardeado. Acaba-se o jogo de escondidas que levara Trintignant a ignorar mesmo a ordem de incorporação no exército e a tomar-se, perante a lei, desertor. Da indiferença, da apatia e do conforto à tomada de uma posição. Não por acaso, esse momento coincide com o fim do filme.

A evolução e o processo de amadurecimento da complexíssima personagem de Trintignant (burguês acomodado e indiferente, filho do representante local do governo fascista) é um dos aspectos centrais do filme, onde até é possível ver alguma representação autobiográfica do próprio Zurlini. Aliás, não serão casuais as inúmeras semelhanças que se podem estabelecer entre esta personagem e a de Jacques Perrin em La Ragazza con Ia Valiggia. Mas neste processo é fundamental a relação, fabulosamente encenada e mostrada, entre ele e a outra figura-chave do filme, a dorida personagem de Eleonora Rossi-Drago. É qualquer coisa que se passa muito para além das palavras: a relação entre eles estabelece-se acima de tudo pelo olhar. O olhar obsessivo de Trintignant sobre ela, a que Zurlini corresponde com uma câmara que se debruça sobre as personagens com igual obsessão. A este respeito há uma sequência absolutamente genial: a visita do grupo de amigos à casa de Trintignant, na noite em que este e Rossi-Drago aceitam que alguma coisa se passa entre eles. Em longos planos com um prodigioso movimento interno, com sucessivas entradas e saídas de campo dos actores, a câmara vai apertando o cerco em tomo do par, da mesma maneira que Trintignant vai encerrando Rossi-Drago no seu olhar. O que a câmara segue, no fundo, é o duelo de olhares que ali se trava, as perseguições e as fugas, numa sequência vertiginosa e verdadeiramente antológica. Como antológicos são todos os planos, de todo o filme, em que Zurlini se fixa sobre o olhar de Trintignant, por sua vez fixo sobre Rossi-Drago - em La Ragazza con la Valiggia levará isto ainda mais longe na relação entre Perrin e Claudia Cardinale: quantos minutos tem aquele grande plano de Perrin observando Cardinale a dançar com os executivos que "engatou"? Dois? Cinco? Dez minutos?


Muito fica por referir: a relação de Rossi-Drago com a mãe e a de Trintignant com o pai, ou toda a fabulosa sequência do circo, ou a noite em que Trintignant é interpelado na praia pela patrulha de soldados, ou o tratamento da luminosidade, aquele céu suposto ser um “céu de Verão” mas tão cinzento. Estate Violenta é uma obra-prima, um dos mais belos filmes do mundo.

LMO

quinta-feira, 16 de abril de 2015

O Estranho Caso de Angélica



O Estranho Caso de Angélica é um filme sobre o encantador sorriso da morte. Ou sobre o encantador sorriso de uma morta, essa Angélica cujo “estranho caso” este filme de Oliveira narra. Aquele plano – que nada, até aí, prenunciara – em que a morta sorri ao fotógrafo Isaac através da objectiva da sua câmara, é das coisas mais ousadas que Oliveira filmou, toda a sua a vasta obra somada. Como o são outros planos, réplicas desse momento inicial em que a morte (ou a morta) começa a sorrir a Isaac, em que das fotografias penduradas no quarto do fotógrafo volta a saltar – em efeito especial tão simples como surpreendente – o mesmo sorriso. Só Isaac o vê, e mais ninguém, e sempre através dos aparatos fotográficos. O “estranho caso de Angélica” também é, portanto, o “estranho caso de Isaac”, o estranho caso de um homem da câmara de fotografar ou, aqui ainda vai dar ao mesmo, da câmara de filmar. O Estranho Caso de Angélica faz rimar a “câmara mortuária” com a “câmara fotográfica”, e fala de como a segunda abre um corredor que conduz à primeira. Deste mundo para outro, na mais “estranha” ligação. “De que fala ele? – Do cinema” – é um diálogo do Nouvelle Vague de Godard que apetece repetir a propósito de O Estranho Caso de Angélica. De que fala Oliveira? Do cinema. Não só do cinema, mas muito do cinema.

E de uma espécie de desejo de cinema: O Estranho Caso de Angélica é, de certa maneira, um filme vindo do passado, baseado num argumento que Oliveira escreveu no princípio dos anos 50, numa altura em que por vicissitudes várias estava impedido de filmar alguma coisa com as características e as exigências de uma história destas. Podemos facilmente imaginá-lo a escrever este argumento nesses anos, desejando, tal como Isaac (no filme, Ricardo Trepa, mais do que nunca a interpretar uma espécie de “duplo” do seu avô) que o cinema viesse irromper num mundo tristemente real, multiplicando-lhe os caminhos e as possibilidades, substituindo-o por um outro mundo. Quando tudo é feio, barulhento (aquela interrupção genial, quase buñueliana, dos camiões-cisterna que passam pela rua debaixo da janela de Isaac: o máximo realismo a volver-se em efeito de irrealidade) e ainda por cima está em crise (as conversas ao almoço, as pontes e os engenheiros, o mendigo que não desarma), como não compreender a atracção de Isaac (e a de Oliveira) por esse mundo de fadas e de sombras que está au-delá, num algures para cujo acesso o cinema é o instrumento mágico? Mágico e arcaico como no tempo dos pioneiros: um “efeito especial” rudimentar (ou seja: com o “efeito especial” tornado “efeito poético”), de inspiração que podia ter nascido em Méliès ou em Cocteau.

Depois, é um filme que evoca, ainda através dessa personagem do fotógrafo, o que parecem ser “revisitações” de alguns momentos da obra de Oliveira, do Douro à Caça e ao Acto da Primavera, estes dois últimos filmes que nos anos 50 Oliveira ainda não tinha feito (mas com que talvez já sonhasse), contudo extremamente “presentes” nas sequências em que Isaac fotografa, como documentarista se quisermos, os trabalhadores no campo. A esse real Oliveira contrapõe a mais desabrida e romântica ficção, nascida do sorriso de Angélica? É possível. Mas também é possível pensar, e é a hipótese que escolhemos, que O Estranho Caso de Angélica é (mais um) traço de união desses dois pólos, entre os quais o cinema de Oliveira nunca deixou de cirandar.

Em todo o caso, esse mundo antigo (o dos anos 50?) não está lá por acaso. Em muitos dos seus filmes, e por certo em vários dos seus maiores filmes, Manoel de Oliveira inventou um tempo e uma época, lançando códigos (de conduta social, de representação, de narração) que o senso comum daria por “desactualizados” ao confronto com aquilo a que o senso comum chama a “actualidade”. A tensão gerada por tal confronto nem sempre é o elemento essencial, mas por norma é um dado determinante, ao menos no modo como afasta os filmes de um naturalismo puramente mimético e “contemporâneo”. Isto adensou-se nos últimos anos – Belle Toujours, as Singularidades de uma Rapariga Loura, O Gebo e a Sombra – e O Estranho Caso de Angélica também é assim, dominado pelo “princípio da incerteza” cronológica. Quando tudo parece apontar para determinada (e passada) época, eis que o “nosso tempo” irrompe, quase como um arrepio. Aqui, o que parece dos anos 50 e o que parece do século XXI contamina-se mutuamente, e dá um mundo irreconhecível, um mundo em perda. Inevitavelmente, também é desta falta de reconhecimento que Isaac foge.


E o que é que ele faz lembrar que tenha sido feito em tempos recentes? Apenas La Frontière de l’Aube, de outro “arcaico”, Philippe Garrel, para quem o cinema também é uma porta de entrada para um mundo que se liberta do meramente “possível”, quer dizer, do tristemente “real”.

LMO

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Thief



Descontando trabalho para televisão e publicidade, e algumas experiências documentais, semi-amadoras, na juventude, o opus 1 de Michael Mann é Thief, a sua primeira longa-metragem pensada e executada como cinema e para cinema. Mann (que nasceu em 1943) talvez não tenha a obra mais linear que é possível conceber – seria preciso rever títulos como The Last of the Mohicans, The Insider, Ali, e ver The Keep (de 1983), o único dos seus títulos que não conhecemos, para tirar bem a limpo a que ponto as derivas temáticas e as incursões noutros modelos narrativos implicam também uma deriva qualitativa. Mas se pensarmos, dentro da obra de Mann, num eixo formado por este Thief, Manhunter (1986), Heat (1995), Collateral (2004), Miami Vice (2006, e possível “masterpiece”), Public Enemies (2009) e Blackhat (2014) encontramos um fio completamente coerente, que se prolonga e se refina para além do que possamos pensar de cada um destes filmes tomado individualmente, e que assenta num série de persistências, temáticas, narrativas, estilísticas, caso a caso dispostas com ligeiras variações mas criando de facto um centro, um “eixo” propriamente dito, em torno do qual tem girado a obra de Mann. E de cada vez que gira, vai atirando poeira para os cantos: Miami Vice, Public Enemies e Blackhat são declinações tão refinadas deste “sistema Mann” que não são só o melhor da sua obra, são também dois filmes máximos da produção americana da última década e, de entre o “mainstream” hollywoodiano, talvez os filmes que melhor encontraram uma maneira de explorar as qualidades e as propriedades da nova imagem digital de que o cinema passou – ou está em vias de passar – a ser feito.

Mas bom, em Thief estávamos em 1981, tudo isso estava ainda muito longe. Ora um dos exercícios interessantes de uma redescoberta desta primeira-obra de Mann é perceber a que ponto essa assinatura se nota, muito ou pouco. Pergunta simples, resposta simples: nota-se, e nota-se muito razoavelmente. Não é, como “forma”, como construção formal, tão impressionante como alguns títulos posteriores, mas os elementos que Mann não deixaria de trabalhar já aqui estavam, em potência ou em latência. Não temos tempo (nem se calhar espaço, mas sem tempo a questão do espaço não se coloca…) para abordar tudo o que vale a pena abordar com o mesmo pormenor. Portanto, e tão equitativamente quanto possível, dedicaremos o resto da “folha” a uma breve enunciação de um punhado de características “mannianas” que já marcam, ainda que algumas delas discretamente, este filme.

Assim:

- uma forma de musicalidade: desde os primeiros planos que os sintetizadores dos Tangerine Dream trazem uma espécie de palpitação que tanto marca o “ritmo cardíaco” do filme como contribui para uma atmosfera entorpecida, um ritmo sonâmbulo, que não é totalmente cortado nem nas cenas mais movimentadas, e que só porventura no tiroteio do clímax final é que – acompanhando os movimentos de grua de Mann – se eleva sobre a acção, deixando de a “comentar” para salientar a sua “explosão”, de um modo, apetece dizer (também pela “coreografia” dessa cena final), “operático”.

- o cansaço: o entorpecimento do ritmo sonoro rima, ou contamina, o entorpecimento das personagens. James Caan, o protagonista, é um ladrão cansado – pensa num último golpe e depois, casa. To get out: obsessão comum a tantas personagens de Mann, sejam elas da polícia (como em Miami Vice) ou do mundo do crime (como em Thief). Mas to get out é complicado, também por razões de inércia; e enquanto não saem, as personagens de Mann vão sonhando, com o mar por exemplo.

- o mar: a partir de Manhunter, o mar, com as suas linhas horizontais a dominarem toda a dimensão do enquadramento, viria a dar substância a essa visão de qualquer coisa para além da acção e para além das obrigações profissionais que subjugam as personagens de Mann. O mar é a possibilidade da fuga, como na fabulosa sequência da lancha e dos “mojitos” em Miami Vice. Ainda sem ser verdadeiramente uma “substância” (apenas, o que até fica muito, uma espécie de miragem), o mar é o elemento associado à liberdade, à paz de espírito, ao conforto doméstico. Aqueles planos na praia são os momentos mais “felizes” de Thief. É para voltar para eles – ou em memória deles – que Caan comete a chacina final.

- a noite e a cidade: também desde os primeiros planos que a noite e a cidade, os néons e as silhuetas verticais recortadas contra o escuro, são um autêntico protagonista. Quase um coro, ao mesmo tempo indiferente às desventuras das personagens e sempre muito próximo, muito presente. A expressão de um mundo euforicamente banal, de uma vida majestosamente alheada. A noite e a cidade, também em Thief (como em Heat, como em Miami Vice), olham para as personagens, emolduram-nas, mantêm-nas agarradas ao mundo, são uma recordação da sua humanidade. No longo diálogo entre James Caan e Tuesday Weld, mais do que a duração da cena, mais do que as coisas que eles dizem, o que importa são as janelas envidraçadas por trás deles, a noite e os pontinhos luminosos.


LMO

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Sudden Impact



De toda a série com a personagem de Dirty Harry, Sudden Impact foi o único filme em que Clint Eastwood chamou a si a realização. Este foi o quarto episódio (depois de Dirty Harry, Magnum Force e The Enforcer, respectivamente dirigidos por Don Siegel, Ted Post e James Fargo) e a Dirty Harry Clint só voltaria mais uma vez, em 1988, com The Dead Pool, onde a realização vinha creditada ao seu velho comparsa Buddy Van Horn (e que é também, como nos parece dificilmente contestável, o mais irrelevante da série, simples adenda rotineira ao percurso de uma personagem a que Clint pouco ou nada tinha já a acrescentar, e tanto assim que não lhe voltou depois a pegar).

Chamar a atenção para este ponto (a realização em nome próprio) não implica a descaracterização de qualquer um dos outros títulos, porque é evidente que Dirty Harry foi, desde sempre, uma personagem fortemente controlada por Eastwood (que, de resto, é o único traço de união numa série de filmes que nunca teve duas vezes o mesmo realizador). Implica, isso sim, um reforço da dimensão especial, ou especialmente preparada, de Sudden Impact, confirmada aliás pelos relatos da sua demorada gestação e da apertada supervisão que Eastwood exerceu sobre a escrita do argumento. Num certo sentido, Sudden Impact é a despedida de Dirty Harry, que no fim desaparece na sombra de um mundo tornado cada vez mais grotesco e distorcido, sujo e psicopata (e é por passar por cima disto, como se nada fosse, que The Dead Pool parece a tal adenda insignificante).

Escreveu Noel Simsolo, no seu livro sobre Eastwood, que Sudden Impact era o filme em que o cineasta mais se tinha preocupado em aprofundar tudo o que o separava da personagem de Dirty Harry. Parece-nos uma boa maneira de ver as coisas, e de definir o “projecto” de Sudden Impact. Mais ainda, acrescentamos, um filme em que essa “separação” se processa por tangentes auto-paródicas, como se se tratasse de filmar Dirty Harry enquanto personagem “mitológica” e irreal – por exemplo a cena no “diner”, dos contrapicados grandiloquentes com que Clint se filma à tirada sobre os seus amigos Smith & Wesson (que o realizador imaginava ser a que fosse “pegar”; mas não, o que “pegou” foi o “make my day” que se ouve perto do fim). Toda a primeira parte de Sudden Impact (até ao momento em que Harry deixa São Francisco e vai para a cidadezinha onde o resto do filme se desenrola) parece pensada de maneira a criar um “excesso” na personagem. Um excesso de presença, um excesso “iconográfico”, um excesso de “aura”. Ao ponto de se chegar mesmo a uma espécie de absurdo, de que é exemplo a cena da “chantagem” com o velho mafioso, que morre por acção directa das palavras de Harry, como se tudo nele se tivesse tornado tão “excessivo” que até as suas palavras produzissem um efeito mortífero. Uma personagem em excesso é uma personagem que está a mais – como bem percebem os seus superiores que, cansados da tendência de Harry para criar um novo sarilho a cada resolução de outro sarilho, o mandam embora por uns tempos, umas “férias à força” a ver se as coisas (incluindo Harry) se voltam a equilibrar. É humilhante, mas a humilhação é o outro lado da auto-paródia, já estava presente no filme (a cena no tribunal, a primeira com Harry, onde o réu é mandado em liberdade por irregularidades processuais, os insultos e o “you’ve got class, Harry”) e voltará a estar (por exemplo, o cão, “indomável” no que à satisfação de necessidades fisiológicas diz respeito, que a certa altura o acompanha).


O cão, e já que falámos dele, que é o símbolo mais visível da espécie de mergulho na animalidade (“com animais nunca”) do mundo da segunda parte, suja, fria, psicologicamente viscosa, quase um barroquismo psicopata que não está longe, em certos momentos (a ideia de um universo deformado, para lá do espelho), dos “bas-fonds” de algum Lynch. À personagem “em excesso” da primeira parte corresponde, na segunda, uma humanidade “em defeito”. À criminalidade urbana de São Francisco (uma doença “social”) sucede-se a espiral psicopata (uma doença “mental”) do lugarejo. Nada é verdadeiramente reconhecível ou enquadrável, os pontos de referência estão corrompidos desde o princípio, as personagens são sombras maniqueístas, entidades puramente malévolas, um horror de comboio fantasma conduzido à sua feérica apoteose (a sequência final, com a feira e a roda). E tudo isto serve de cenário à aproximação entre Harry e aquela que ele era suposto, desde o princípio, perseguir e capturar: a personagem de Sondra Locke, prisioneira do seu irracional desejo de vingança (é, de resto, por ela que o filme começa, e ela é tão protagonista de Sudden Impact como Harry). O que perturba mais no relacionamento dos dois não é a história da atracção ou do amor que nasce entre eles; antes a entrega e o beneplácito de Harry à fúria vingativa e desequilibrada de Locke, a única coisa com que ele parece ser capaz de se relacionar num mundo definitivamente passado para além de todos os cânones de reconhecimento e empatia. No fim desaparecem ambos na noite: “exit Harry”, a partir de agora habitante de um mundo de sombras. Da “fúria da razão” à “doença da razão”, eis a história de Dirty Harry Callahan.

LMO

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Blow Up



Seria curioso averiguar, seriamente, os efeitos que o tempo operou sobre Blowup, um dos mais célebres, mas também um dos menos típicos, filmes de Michelangelo Antonioni. Seria curioso, sobretudo, averiguar de que forma resiste Blowup num tempo em que algumas das suas preocupações centrais se disseminaram por várias áreas criativas, com particular incidência nas chamadas “artes da imagem” (que não tratam, necessariamente, da imagem cinematográfica). O que há de mais forte em Blowup, ainda hoje (ou sobretudo hoje), é a sensação de que o filme marca um momento decisivo: a história do fotógrafo interpretado por David Hemmings pode simbolizar a história do momento em que o homem olhou para uma imagem e percebeu que ela não dizia assim tanta coisa (nem uma palavra, quanto mais mil) que ele pudesse perceber. O núcleo de Blowup é a história do confronto de um homem com uma imagem, tomada na mais simples das suas dimensões, a da sua materialidade – e tudo se perde, a dado passo, no mar de pontinhos pretos e brancos que são a única dimensão verdadeiramente concreta, palpável, da fotografia tirada por David Hemmings. Esses pontinhos, espécie de enorme labirinto apenas potencialmente representativo, acabam por ser, na sua “incontornável” verdade, a única verdade “incontornável” de qualquer imagem: sim, isto é uma imagem, até que ponto ela pode funcionar como revelação da realidade, eis o que permanece um mistério insolúvel. A trajectória fascinada e obcecada da personagem de Hemmings pode funcionar, a este nível, como crónica do momento em que se perdeu a espécie de “unidade primordial” entre uma imagem e o seu referente, ou melhor dizendo, do momento em que se ganhou consciência de quão ilusória era essa unidade. Noutros termos, é um pouco como naquelas célebres fotografias de “fantasmas”, que depois de reveladas mostram qualquer coisa que, em princípio, não devia “lá” estar.

O que aparece à personagem de Hemmings é um desses fantasmas. Mas aparece onde, na fotografia ou apenas na cabeça dele? Todo o filme tende para a confirmação de que o fantasma estava na cabeça dele, pois a imagem, afinal, não prova nada. E os mimos que aparecem no princípio do filme voltam no fim, com um simulacro de jogo de ténis, numa aparente confirmação de que “it’s all in the mind” – resposta relativamente apaziguadora para Hemmings, que até esboça um sorriso quando começa a ouvir o barulho da bola de ténis que não existe. Não existe? Existe, existe: como muita coisa o tenta explicar, desde os ensaios sobre a loucura aos ensaios de Cronenberg sobre a “virtual reality”, não há nada de mais verdadeiro do que o que acontece “in the mind”. De certa forma, o sorriso final de Hemmings é um sorriso triunfante: ele tinha razão.


Se calhar nada disto é muito “antonioniano”, se calhar nada disto são conclusões essenciais (ou sequer pertinentes) numa integração de Blowup na obra do cineasta italiano, e talvez tenham muito mais a ver com a história original de Cortazar (mesmo que o filme altere substancialmente) em que o argumento se baseia. Mas a verdade é que tudo isto se insere num contexto bastante caro a Antonioni, enquanto formulação temática: a “alienação”. Não é seguro que a costela moralista de Antonioni não tivesse pretendido, acima de tudo, chegar a uma espécie de “crítica social” – “swinging London”, cidade da moda em meados dos “sixties”, a juventude, os fenómenos “pop” da música à própria fotografia, o confronto entre uma urbanidade mais ou menos espumante e a dura realidade suburbana (o filme começa, não o esqueçamos, num ambiente fabril). Se o era, o mínimo que se pode dizer é que a história de Cortazar lhe forneceu uma maneira terrivelmente eficaz de o fazer. Vistas bem as coisas, há alguma coisa mais vazia do que a vida de Hemmings, ou de que esta Londres que em tantos planos parece pura e simplesmente desabitada? A futilidade reina em Blowup, por entre manequins e relíquias de idolatria "pop" (o pedaço da guitarra dos Yardbirds) , e o vazio cansado (que aparece estampado nos olhos e no rosto de David Hemmings, esse actor que teve o azar de não envelhecer tão bem como Terence Stamp) da personagem do fotógrafo é, afinal, o terreno propício ao nascimento de outra alienação, provocada pela fotografia que o obceca. Menos fútil? Nada o garante, bem pelo contrário – o círculo terrível de Blowup fecha-se nessa troca de uma alienação por outra. E é por isso que, no fim de contas, o último plano do filme talvez não signifique mais do que a aquisição de uma espécie de “sagesse” nihilista.

LMO

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Absolute Power



Absolute Power, que veio a seguir a Bridges of the Madison County, e foi estreado uns meses antes de Midnight in the Garden of Good and Evil (1997 foi a terceira vez em que Clint Eastwood estreou dois filmes no mesmo ano; a quarta seria o ano de The Changeling e Gran Torino), sofre como alguns outros eastwoods (o magnífico True Crime, por exemplo) do período pós-consagração com o facto de não parecer especialmente significativo. Não tem nenhum grande tema que se imponha por si próprio, não parece conter nenhuma reflexão particularmente aguda sobre a figura do próprio Clint (infinita matéria), não evidencia nenhum “tour de force” em termos de interpretação ou de realização. Não é raro sentir-se uma certa subalternização de Absolute Power, visto como um thriller dirigido com mestria mas relativamente rotineiro.

Rotineiro seria com certeza nas mãos da esmagadora maioria dos realizadores hollywoodianos potencialmente atraídos por material como este – uma história excelente, adaptada por William Goldman (um dos principais argumentistas na Hollywood das últimas décadas) segundo indicações precisas de Clint Eastwood (que implicaram alterações substanciais ao romance-base: no livro, a personagem de Clint morria pouco depois do meio), mas ainda assim uma história não muito diferente, na essência pelo menos, da de muitos outros thrillers. Só que, francamente, de rotineiro em Absolute Power não conseguimos ver nada, apenas uma imensa mestria e bastante significado. E um significado não especialmente reiterativo, visto que o filme, trabalhando, é certo, sobre um recorte típico de personagem eastwoodiana, ajuda a precisar esse recorte e mais ainda a precisar a relação dessas personagens típicas com o Poder.

Isto, para além da eventual “private joke”. O motivo por que Luther Withney (a personagem de Eastwood) passa dias no museu a copiar quadros clássicos será rapidamente explicado pela narrativa, mas não conseguimos deixar de ver a primeira cena de Absolute Power, com o “don’t give up” da rapariga (por acaso ou não, Alison Eastwood, filha de Clint), como uma declaração de irónica modéstia: eis “o últimos dos clássicos” (como por esta altura já se tinha tornado chavão) a aperfeiçoar o traço observando e imitando os… clássicos. Pode ser mera coincidência, mas esta cena, tendo o condão de evocar o “Eastwood metteur en scène” através do “Eastwood actor”, parece ainda prefigurar uma característica da personagem e do seu envolvimento narrativo: como o terço final deixará claro, Luther Withney, personagem esquiva (comparam-no, a certa altura, a uma enguia), é uma espécie de “encenador” na sombra (as pequenas ajudas à vida doméstica da filha), e será como “encenador”, pela capacidade de dispor e administrar os elementos da cena, que porá em marcha os mecanismos, a partir de certa altura quase auto-suficientes, necessários à boa resolução da intriga. “Encenador”, dissemos, depois de ter sido “espectador” – do sórdido filme, ou da sórdida peça, à base de sexo, morte e mentiras, que resolveram desenrolar à sua frente. Absolute Power também podia ser descrito assim: a história de uma passagem à acção, de “espectador” a “encenador” por reacção à “absoluta mentira” que lhe é dada a contemplar.

O momento dessa “passagem”, ou da decisão dessa passagem, é fulcral. Provavelmente a cena mais significativa (no sentido em que antes usámos a palavra) de Absolute Power. Whitney está no aeroporto, disposto a fugir, amedrontado por se sentir à mercê de poderes demasiado “absolutos” para o seu próprio poder de ladrão refinado e escrupuloso. E então vê, na televisão do bar (com o “gag” do “apague a tv” e do “acenda a tv”), todo o espectáculo da hipocrisia dado pelo Presidente (Gene Hackman) – tudo o que as personagens eastwoodianas mais abominam, a degradação moral das autoridades efectivas e/ou simbólicas (no caso da personagem de Hackman, ambas). É o que basta para espicaçar o individualismo puritano de Luther Withney, e convencê-lo de que “absoluto” é o seu próprio poder: o poder da honestidade e da inteligência, o poder de uma mise en scène ao serviço da verdade. É toda a segunda parte do filme.

E depois, ou para além disto, e já que falámos de “mestria”, Absolute Power é um festival – de mise en scène propriamente dita. A maneira como Clint prolonga a cena do assalto inicial (quase uma “falsa pista” quanto ao que realmente será importante), e depois prolonga a cena do crime; ou a magistral sequência de “suspense” que é o encontro com a filha, com todos os dados rigorosamente fornecidos ao espectador desde o início (que fica apenas com a dúvida: qual vai ser a importância daquele vidro que está a ser montado pelos operários); o bailado entre Hackman e Judy Davis ou a aproximação entre o polícia (Ed Harris) e a filha de Luther (Laura Linney), do diálogo do “vivo sozinho” ao olhar falsamente severo que Clint deita a Harris na cena final no hospital; ou a elipse que se sucede à visita do velho Sullivan ao Presidente, e que “resolve” a narrativa.


Não, não existe aqui nada de rotineiro, só pura mestria e abundante significado. Um grande, grande filme.

LMO