sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Les Cinéphiles (I & II)


Eis os dois primeiros filmes da série Les Cinéphiles. Não são a única, nem foram a primeira, experiência de Louis Skorecki como realizador de cinema, mas são seguramente a mais famosa. Até por, de algum modo não muito rebuscado, serem filmes que partem também do lugar do espectador – do crítico – que Skorecki foi durante décadas, e por não ser difícil encontrar ecos, ligações, sinais de luzes, entre o seu pensamento escrito (antes e depois de 1988) e algumas coisas – algumas ideias, algumas conversas, mas sobretudo algumas emoções – presentes nestes filmes. Concebida como um par de filmes, a série só se tornou verdadeiramente uma “série” há poucos anos, quando Skorecki filmou uns Cinéphiles 3, e logo a seguir, aproveitando material não utilizado na montagem desse “episódio”, um Retour des Cinéphiles.

Louis Skorecki filmou Les Cinéphiles em 1988, sensivelmente dez anos depois da publicação, nos Cahiers du Cinéma, de um dos seus mais célebres artigos, Contre la Nouvelle Cinéphilie (artigo que ele “passou” a filme, artesanalmente, por volta de 1984). Se em 1978 aquilo que Skorecki entendia por “cinefilia” era já algo que ele considerava perdido, ou pelo menos irremediavelmente transformado, em 1988 estaria como? Não é pergunta de somenos, quando se constata que Les Cinéphiles 1 e 2 (tratá-los-emos como um só filme, pesem as diferenças que mais tarde assinalaremos) vivem absolutamente no presente, no presente de 1988: fala-se das Asas do Desejo, de Carax e de Jarmusch, descobre-se em comum uma aversão por Alan Parker, há mesmo uma desgraçada que gostou muito do “bleu” do Grand Bleu. Não é uma evocação nem uma reconstituição de um “tempo da cinefilia”. É uma encenação (ambígua) de uma ideia de cinefilia (ou é esta ideia, e não a encenação, que é ambígua), recortada num cenário realista e contemporâneo, que faz o “tour” por algumas salas de cinema (a mais reconhecível, embora Skorecki apenas filme “indícios”, a da Cinemateca Francesa quando era em Chaillot) indispensáveis no roteiro cinéfilo de Paris. Uma Paris, de resto, quase “despovoada”, sem personagens falantes que não sejam as que pertencem à “tribo” filmada por Skorecki. Nalguns planos, vem-nos a memória daqueles filmes de ficção científica (como o Five de Arch Oboler) sobre um tempo pós-apocalíptico em que… não sobrou ninguém. Numa cena, um grupo de personagens está diante de um cinema que, dizem, tem há décadas o mesmo mobiliário, os mesmos estofos, e passa… os mesmos filmes. Ou seja: a ruína intacta, a ruína que é ruína porque não mudou. A ambiguidade desta evocação da cinefilia talvez não tenha melhor síntese do que nessa cena, coberta de solidão (solidão das personagens e solidão dos lugares).

O deserto parisiense amplia a tristeza, a vaga tristeza que se vai anunciando por entre os diálogos e por entre os gags, e que se adensa no episódio 2 (o que fala de um “desaparecimento” e não, como o episódio 1, de um “regresso”), o que abre com a música de Pinchik (no 1 não havia música alguma), lindíssima de melancolia indefinível (Skorecki voltaria a ela para o episódio 3 e para o Retour). Por que desapareceu Eric? Ninguém sabe. Sabemos que há quem – a rapariga que o procura desesperadamente – lamente muito o seu desaparecimento (mas a outra rapariga, a que gosta do Grand Bleu, não está disposta a ajudar na busca). Num plano, vemos Eric transformado em fantasma, obra e graça de um rudimentaríssimo “efeito especial”. Eric a disparu (é tudo). Outros vão, provavelmente, desaparecer em breve, como André, o que observa que as pessoas que entram na Cinemateca “têm o ar de quem está a entrar num crematório” e nos últimos minutos quer sair de Paris, cidade onde não se pode ir a um jantar sem que os temas de conversa sejam “Carax, Beineix e Godard”. Aqueles planos no terraço do Libération, ligeiros contrapicados com as nuvens por fundo (voltar-se-á, em futuros filmes de Skorecki, ao terraço do Libération), são já planos do fim do mundo.


Tristíssimos, estes Cinéphiles são também divertidíssimos. Impossível separar os dois lados. Praticamente todas as cenas são construídas em torno de diálogos, por onde passam manias cinéfilas, pequenos “éclats” teóricos, “slogans” e manifestos, “private jokes” (as referências a “la revue”…). “Tu m'avais dit que’elle était plutôt Rohmer mais je la trouve plutôt Sacha Guitry”, diz Jean de uma rapariga a quem é apresentado – e há toda uma “imago mundi” por detrás de frases como estas. Como já se tinha percebido na história de Esther, a que “vai ao cinema com qualquer um”, é aí, a uma “imagem do mundo”, a uma “compreensão do mundo”, que Skorecki quer chegar.

LMO

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Memoirs of an Invisible Man


Memoirs of an Invisible Man é, em toda a sua obra, o filme de que John Carpenter mais mal diz. Mesmo para os seus grandes falhanços (grandes falhanços na bilheteira, entenda-se) do princípio dos anos 80, que o tempo tornou em “beautiful losers”, Carpenter só tem, regra geral, palavras de estima. Com este, que marcou um regresso aos grandes estúdios (a Warner Brothers) e pôs fim ao período de inactividade excepcionalmente longo (quatro anos) que se seguiu a They Live (batido depois pelo período entre Ghosts of Mars, de 2001, e The Ward, de 2010, descontando os dois episódios para a série de televisão Masters of Horror), com este filme, dizíamos, Carpenter não é nada meigo. Como se confere, por exemplo, na entrevista publicada no catálogo editado pela Cinemateca, onde Carpenter verbera as interferências constantes da sua estrela, Chevy Chase (não creditado como produtor mas, a julgar pelas palavras de Carpenter, com uma palavra determinante sobre os destinos do filme), e lamenta especialmente a imposição de uma narração em “off” com que nunca concordou (“detesto a voz ‘off’”).

É verdade, e arrumemos já com este assunto, que a voz “off” é banal, resquício de um tipo de cinema, e em particular de um tipo de comédia americana muito “anos 80”, muito “Saturday Night Live” e similares (que é o meio de onde emergiu Chevy Chase), muito verborreica, que tem pouco ou nada a ver com o cinema de John Carpenter. E que não acrescenta, de facto, nada de muito significativo ao filme, nem sequer à composição da personagem interpretada por Chase (que se chama Nick Halloway, num mais que certo trocadilho com a quase homófona palavra “hollow”, em português, “vazio”, “por preencher”). Mas é igualmente verdade que o filme não é danificado pela presença da voz “off” (esquecemo-nos dela rapidamente, e terminado o filme lembramo-nos de tudo menos da voz “off”), e que ela, até nas suas irrupções extemporâneas, dá uma outra dimensão ao conflito central do filme: a luta de um homem contra o seu apagamento. Podemos facilmente integrar a presença da sua voz no mesmo processo de “resistência”; assim como, a partir das palavras de Carpenter sobre a sua relação com Chase, se abre uma dimensão interessante, como que “comentadora” do próprio processo de feitura do filme. Chase queria sobressair, fazer filmes “mais sérios” (Carpenter dixit) do que as suas comédias habituais, e escolheu um filme sobre um homem invisível? Ironia, mas Chase não a quis levar até ao limite – e na intermitência (que às vezes parece um pouco aleatória) da sua visibilidade para o espectador (sendo certo que para as outras personagens ele é sempre invisível), no seu próprio desejo de não ser apagado, joga-se porventura um conflito entre a vedeta e o realizador. E assim é bem possível que Memoirs of an Invisible Man se converta inesperadamente naquele tipo de filmes que, como Jacques Rivette gosta de dizer, são em simultâneo “a reportagem da sua rodagem”.

Se este conflito parecerá anedótico, não deixa de ser um curiosíssimo eco do conflito narrativo do filme. Muita gente viu Memoirs of an Invisible Man como um filme, em última análise, sobre os efeitos especiais, sobre a imposição do “digital” e a sua lógica de apagamento do actor e do elemento humano. Certamente que sim, e nesse sentido ainda um prolongamento de They Live: é entre as grandes corporações e os grande poderes estatais, a CIA mais propriamente, que se jogam os infortúnios de Nick Halloway, ele próprio saído de um universo (um pouco “yuppie”, de um elitismo vulgar, passe o pleonasmo) que Carpenter nunca tratou muito bem (vide o tratamento inicial da personagem, e depois o dos seus supostos “amigos”, que com a excepção de Daryl Hannah são uns perfeitos imbecis). Mas a esse respeito seria interessante assinalar que Carpenter, mesmo para comentar o “digital”, se serve dele “a contrario”: pensando que o digital, por norma, serve para acrescentar alguma coisa à imagem, depositar-lhe alguma coisa que não estava lá ou transformar os corpos dos actores, o que vemos em Memoirs of an Invisible Man é o digital usado como subtracção, como algo que devia lá estar (na imagem) mas não está. É o próprio digital que se torna “invisível”.

E por isso, se se tornam notados (cf.  ainda a entrevista do Catálogo) os dispositivos ópticos que forçam a revelação do corpo de Halloway (em espécie de metáfora do cinema, que como diz Carpenter “deve fazer aparecer o invisível”), mais notada ainda devia ser a belíssima sequência em que Daryl Hannah, usando rudimentares processos (os batons, cremes e pós de beleza), consegue criar algum tipo de permanência ao rosto de Halloway. Se o digital tornou tudo invisível, e se fez ele próprio invisível, é a maquilhagem (o mais velho truque, a mais velha ilusão do mundo: o teatro) que salva o rosto da personagem – e se o rosto é a porta da entrada para a alma esse salvamento é tudo o que Chevy Chase precisa para que Hannah, apaixonando-se, lhe salve também a alma. Talvez seja o que de mais profundo e mais belo Memoirs of an Invisible Man contém em termos de discurso sobre o “digital” e sobre o cinema.


John Carpenter, “cineasta analógico num mundo digital”: este é o filme que mais validade dá a esta célebre expressão.

LMO

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Renaldo & Clara



"O Bob Dylan é o tipo com um chapéu", diz Bob Dylan, de cabeça descoberta, a uma senhora que lhe pergunta "onde está Bob Dylan". É uma cena de Renaldo & Clara, realizado pelo próprio Dylan, ficção construída por entre os buracos de um documento (documento construído por entre os buracos de uma ficção), encontro entre o filme-concerto e uma espécie de teatro absurdista. 

Quando estreou, em 1978, pouca gente percebeu o que raio se passava em Renaldo & Clara, e o filme ficou com a péssima fama de ser um exercício auto-indulgente, uma manifestação do narcisismo de Dylan envolto em nonsense e incoerência. Poucas vezes voltou a ser visto ou discutido. Mas tem os seus fãs. O crítico de cinema francês Louis Skorecki, um dos maiores dylanianos em circulação, escrevia há algum tempo no seu blogue (quase integralmente dedicado a Bob Dylan) que Renaldo & Clara vale "todo o Visconti, todo o Pialat, todo o Huston, todo o Cassavetes, todo o Peckinpah, todo o De Palma, todo o John Woo"... Se exagera, ou se isto diz mais sobre os desamores de Skorecki do que sobre o seu amor por Renaldo & Clara (e é verdade que diz), só ele pode esclarecer. 

Sejamos menos bombásticos e mais modestos no tiro ao alvo: Renaldo & Clara vale, seguramente, todo o I"m Not There com que há dois anos Todd Haynes ensaiou uma aproximação ao labirinto dylaniano. Renaldo & Clara é Dylan a dizer, com todos os dentes e um grande sorriso, que "não está aqui". Procurem o tipo com o chapéu.

Um pouco da genealogia por detrás de Renaldo & Clara. Fora aparições esporádicas aqui e ali, Bob Dylan esteve oito anos sem fazer uma digressão a sério, entre o famoso acidente de motorizada em 1966 e a série de concertos com os The Band (ou com A Banda, se preferirem), em 1974. Enquanto viajava e tocava com os seus amigos da Banda, pensava e preparava já um "come-back" em nome próprio, mas rodeado de convidados e amigos, mulheres e ex-mulheres. Chamou a essa digressão a Rolling Thunder Revue, Dylan & amigos(Joan Baez, Bob Neuwirth, Roger McGuinn, etc.) numa caravana itinerante que percorreu os Estados Unidos e o Canadá entre o final de 1975 e o princípio de 1976. O bootleg oficial desta digressão foi editado há poucos anos, na chamada Bootleg Series.

Quis também fazer um filme, um filme-concerto que não fosse bem, ou não fosse só, um filme-concerto. Escreveu um argumento, com colaboração de Sam Shepard (que também aparece no filme). E durante a digressão foi rodando esse argumento, basicamente uma série de cenas soltas, aparentemente desconexas e ligadas umas às outras mais por motes simbólicos (as rosas, por exemplo) do que por qualquer evidente continuidade narrativa. Pelo meio, planos filmados durante as actuações, que incluem versões (por norma óptimas) de várias de entre as suas mais conhecidas canções. 

O mundo dos espectadores de Renaldo & Clara divide-se em três campos. Os que juram que tudo faz sentido, as articulações entre as cenas e as articulações entre as cenas e as canções (assim convertidas numa espécie de coro), tudo foi escrito e tudo obedece a um plano que não deixou margem para qualquer improvisação. Os que juram que nada faz sentido, que é tudo aleatório e não tem, no fundo, importância alguma, como se fosse uma grande partida que Dylan fez ao exegeta que há dentro de cada fã dylaniano (assim como quem diz "vai e dá-lhes trabalho"). E o terceiro campo, os que se estão nas tintas para o "pequeno teatro" ou para o "pequeno cinema" de Dylan, não perdem um segundo a tentar descodificar os jogos de espelhos entre o filme e a sua vida real (Dylan interpreta Renaldo, e Sara, então a sua mulher, é Clara), se marimbam para os duplos e para as espirais, e aceitam essas cenas como meros intróitos enquanto esperam por um novo momento com uma canção ao vivo.

Digamos assim: o filme dá, de facto, algum trabalho (porventura ingrato), se for visto com a preocupação de identificar e descodificar os simbolismos. Mas dá, sobretudo, prazer, se for visto pelo seu "valor facial", pela ironia que se desprende das conversas e das situações, pela evidência do espectáculo que é Bob Dylan a jogar ao gato e ao rato consigo próprio, com as suas mulheres (Joan Baez foi namorada dele na primeira metade dos anos 60) e, seguramente, com os seus espectadores. E, nessa perspectiva, não é um objecto assim tão estranho, para quem tenha uma ideia do que eram as leituras de Dylan (e também do que sempre foram as suas letras e a sua poesia), dos meios em que ele circulou no tempo em que andava a visitar Edie Sedgwick ou a oferecer canções a Nico: parece evidente que o modelo de cinema de Dylan, até na maneira de explorar a ironia narcisista e o jogo das aparências e das ausências (aquela maquilhagem branca a sublinhar a "performance", a reforçar o "fantasma") vem muito mais das tradições do underground nova-iorquino do que propriamente de Hollywood... E é um belo filme. 

Dylan nunca mais quis ser realizador, mas desta vez foi mesmo um realizador.

LMO