quinta-feira, 17 de abril de 2014

The Outlaw Josey Wales


THE OUTLAW JOSEY WALES
de Clint Eastwood
The Outlaw Josey Wales é, dos seus filmes, o preferido de Clint Eastwood (ou pelo menos era, aqui há uns anos). É fácil acreditar nessa preferência, porque The Outlaw Josey Wales sintetiza admiravelmente, e com menos ambiguidade do que noutras circunstâncias, um punhado de características essenciais na “persona” de Clint. De resto, acompanhar todo este período do anos 70 em que a sua obra alternava “westerns” e “policiais” (especialmente os com Dirty Harry) permite uma conclusão óbvia: os “westerns” iluminam os “policiais”, Dirty Harry é um “cowboy” num cenário moderno e urbano mas fundamentalmente indistinto dum cenário de “western” – porque a lei e a justiça, por alguma razão ou por um conjunto de razões, se tornaram inoperantes (e a inoperância da lei, a sua impotência e a sua incapacidade, são o tema subjacente a todos os filmes com Dirty Harry). Curiosamente, talvez nunca se tenham tirado, mesmo por quem defendeu Clint desde cedo e durante o tempo da artilharia pesada virada contra ele, as devidas ilações quanto ao teor do seu retrato de uma América ainda e sempre embrenhada numa “cultura de violência” que sufoca a eficácia da lei e da justiça.
Que melhor época para sintetizar esta impotência legal, levada ao ponto do caos, do que o aftermath da Guerra Civil retratado em The Outlaw Josey Wales? Bandoleiros que se tornam soldados a partir do momento em que vestem um uniforme, e vice-versa. A lei não tem “rostos”, tem “máscaras”. É nesta confusão que se desenvolve The Outlaw Josey Wales, de resto com profundas e realistas bases históricas (na descrição, por sua vez demasiado confusa para aqui a tentarmos resumir, das inúmeras milícias e grupos paramilitares que medraram em torno dos exércitos da União e dos Estados Confederados). Atendendo à fama que tinha, há que gabar a coragem (a provocação? o autismo?) de Clint em assumir uma personagem de sulista, mas ao mesmo tempo há que entender que o sulismo de Josey Wales é um sulismo mítico ou mitificado, que serve como ponto de partida, o ponto de partida de um derrotado mas sobretudo o ponto de partida de uma personagem que viu o seu mundo esboroar-se, uma personagem que ficou “sem mundo”.
Ou que ficou reduzido a um pequeno núcleo essencial – a pequena propriedade, a casa, a família. The Outlaw Josey Wales começa como, muitos anos mais tarde (ou não tantos assim, apenas dezasseis), Unforgiven, com um agricultor a tratar da sua propriedade. Nas drásticas circunstâncias que os espectadores verão na primeira sequência, até isso vai ser retirado a Josey Wales. E são essas circunstâncias que o forçam a agir (como sempre: Clint não é um devoto da acção, nem Dirty Harry, apenas alguém que a aceita como uma inevitabilidade, a inevitabilidade que permitirá o regresso à inacção), num mescla de sentimentos que concilia o desejo de vingança com um “je m’en foutisme” (visto que ficou sem nada) quase suicidário, e põe em marcha o processo que fará dele o “fora da lei Josey Wales” (também aqui, no que tem a ver com o relato, com a aura e com a fama, sempre ditadas por terceiros, se encontraria uma relação com Unforgiven). Mas, evidentemente, sempre munido de uma espécie de código de honra, silencioso e nunca expresso, um sentido de decência fundamental que ao longo do filme terá mais do que uma ocasião para manifestar – numa terra sem lei ou onde a lei foi distorcida, a única bússola é a fornecida por uma lei pessoal, por um punhado de valores instintivos (ver, por exemplo, os contracampos da reacção de Clint à iminente violação da personagem de Sondra Locke, em prova de que, mais uma vez, seriam esses valores a forçá-lo a agir, caso disso tivesse chegado a haver necessidade). “Fora da lei”, no fundo, estão todos; mas o único que tem pelo menos uma vaga memória da dimensão moral da lei é Josey Wales, e nisto se funda quase todo o individualismo eastwoodiano.

Houve algum reboliço quando, pouco depois da estreia do filme, se descobriu que o Forrest Carter que assinava a novela em que o argumento se baseou era apenas o pseudónimo de um proeminente membro do Klu Klux Klan. Clint garantiu não saber de nada disso durante a rodagem. Mas tinha mais graça se tivesse sabido, porque The Outlaw Josey Wales é um filme profundamente anti-racista. Num terra onde os brancos do sul e os brancos do norte se andaram a matar e ainda se matam indiscriminadamente, junto de quem é que Josey Wales encontra um “espelho”, um espelho para o seu código de honra, um espelho para o seu “mundo perdido”? Justamente, dos índios. O território índio podia ser uma “reserva” no sentido segregacionista que veio a ter, mas era sobretudo uma “reserva” moral, propriamente dita. The Outlaw Josey Wales tem um pouco de uma declaração de amor pela paisagem americana (como os bons westerns clássicos), na permanente deriva territorial que ocupa grande parte do filme, mas também é uma declaração de amor pela diversidade dessa paisagem e pela memória ancestral que ela conserva. E, tanto mais que Clint já estava aqui (ver, por exemplo, os tempos e a planificação, tudo muito pragmático, do derradeiro combate, mas sobretudo do duelo de olhares, campos/contracampos, em que se decide o confronto final com a sua “nemesis”) completamente livre dos maneirismos “leonianos” ainda tão presentes no seu primeiro western (High Plains Drifter) é de Ford que mais nos lembramos ao longo de The Outlaw Josey Wales, como se o diálogo fosse, agora, com The Searchers ou com Cheyenne Autumn. “Revisionista”, como lhe chamam, eventualmente; mas no mesmo sentido em que os derradeiros Fords foram, eles próprios, revisionistas. Ou seja, usar a mesma tradição para dizer outras coisas: dizer “o último dos clássicos” nem sempre faz sentido, aqui sim.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Entrevista com Manuel Mozos

NUNCA SE GANHA E NUNCA SE PERDE

“Quatro Copas” é a quarta longa-metragem de ficção de Manuel Mozos (n. 1959), história de um trio de personagens que depois passa a quarteto unido e desunido pelas circunstâncias afectivas, numa Lisboa sempre reconhecível mesmo quando não é identificável. É um momento feliz na obra de Mozos, desde sempre assolada por percalços variados: “Quatro Copas” estreia-se comercialmente, “Ruínas” (ainda não estreado) tem ganho alguns prémios importantes. Em conversa com o Ípsilon, Manuel Mozos falou de “Quatro Copas” e dos caminhos difíceis percorridos pelos jovens cineastas portugueses que se estrearam nos anos 80. Mozos foi um deles, e aprendeu que “nunca se ganha e nunca se perde”.

PÚBLICO – A sua carreira vive em 2009 um momento particularmente feliz. “Ruínas” tem dado nas vistas [foi premiado no IndieLisboa e no FID-Marselha], “Quatro Copas” estreia-se comercialmente… E apresentou ainda “Aldina Duarte – Princesa Prometida”. Numa obra que tem sofrido com tantas irregularidades, tem alguma explicação para esta conjuntura afortunada?
MANUEL MOZOS – É uma coincidência, que até é devida a essas irregularidades. A rodagem do “Quatro Copas” foi em 2005, está pronto praticamente desde há dois anos, e há um ano e meio que estava à espera da estreia. O “Ruínas” também foi um processo prolongado, ficou pronto agora. Assim como o da Aldina. É uma coincidência, mas acho que há uma coerência [risos] na relação com as irregularidades. O caso extremo é o “Xavier”, que ficou muitos anos à espera de ser estreado, mas há uma aura de invisibilidade em torno de tantas coisas que fiz…
P- “Quatro Copas” é a sua quarta ficção. Como é que a relaciona com as outras três [“Um Passo, Outro Passo, e Depois”, 1989, “Xavier”, 1992 e “…Quando Troveja”, 1999]?
R- Por um lado, ambientarem-se todos em Lisboa, e por outro, uma proximidade nos traços das personagens. Personagens em queda, que acabam por ter uma espécie de redenção, e se movem no quotidiano. No “Quatro Copas” isso sente-se de maneira diferente, porque seguimos quatro personagens e não uma, mas isso para mim até é um pouco uma súmula, permite-me apanhar quatro personagens de gerações diferentes.
P- A Lisboa de “Quatro Copas” é um pouco mais tortuosa. Gira entre o corriqueiro do centro comercial e a clandestinidade da casa de jogo. É uma Lisboa dada mais por ambientes do que pela rua.
R- Concordo. Não é o aspecto realista da cidade que me interessa. Antes usar a geografia como “décor”, procurar o que nela há de “papelão”, usá-la como uma paleta. Neste filme há mais interiores, de facto. A ideia de ter personagens a moverem-se numa aparência de subterrâneo já me tinha interessado no “…Quando Troveja”, mesmo se aí acabei por não a explorar como queria. Em todo o caso não é o realismo estrito que me motiva. O casino clandestino, por exemplo, tem um lado postiço, é sobretudo uma ideia, um ambiente…
P- Se há uma coisa que define os seus filmes é a maneira de trabalhar as personagens e de se relacionar com elas. É única e inconfundível no cinema português. Em termos de construção, diria que é narrativa que as decide, ou que são elas que decidem a narrativa? É que fica a sensação de que a partir de certa altura o seu amor pelas personagens, por todas elas, se sobrepõe a tudo.
R- Este filme tem uma nuance. Ao contrário das minhas outras ficções, que partiam de ideias minhas ainda que depois as desenvolvesse com outras pessoas, o argumento do “Quatro Copas” nasceu de um trabalho conjunto com a Cláudia Sampaio e o Octávio Rosado. Julgo que para eles o mais interessante até era o trabalho sobre a história. Mas eu envolvi-me especialmente no desenvolvimento das personagens, até de maneira que nalgumas partes se poderia dizer que a história ficou fragilizada. Na montagem ainda reforcei mais isso. Tentei tirar partido do que havia de mais forte no trabalho dos actores. Digo “fragilizada” no sentido em que a certa altura me preocupei menos com a “coerência” da história do que com o que fazia com que se pudesse acreditar nas personagens.
P- Tendo formação e experiência de montador, com inúmeros trabalhos para outros realizadores, consegue criar uma distância face ao material filmado por si?
R- É complicado. Nos meus filmes trabalho sempre com outros montadores. E gosto de lhes deixar algum espaço para eles fazerem a sua leitura. A sua leitura e a sua escrita. Mas por força das circunstâncias acabei, neste filme assim como no “Xavier”, por estar muito directamente ligado à montagem. Houve uma primeira versão, montada pelo Pedro Marques, com a qual estávamos bastante satisfeitos, mas era uma versão decidida na relação com uma série de trechos musicais de que não pudemos comprar os direitos, que eram uma exorbitância. Como ele depois não estava disponível, fiquei eu, um bocado a contragosto, a trabalhar na remontagem.
P- Percalços e interrupções… A sua carreira parece atrai-los: o “Xavier” foi o que foi, o “Passo” é um dos poucos “missing films” dos anos 90…
R- Há mais, há mais…[risos]
P- A pergunta é: num meio já de si tão complicado e frequentemente adverso como é o do cinema português, como é que se lida com toda esta adversidade adicional?
R- Já me angustiei mais com isso. Hoje acho que não vale a pena perder muito tempo a pensar nessas contrariedades. Prefiro estar contente com a vida do que viver amargurado por causa de alguns azares. Também já não tenho as pretensões e as ambições que tinha há vinte ou mesmo há dez anos. Há uma certa resignação, se calhar um pouco estúpida. O caso do “Passo” ainda me faz sofrer um bocadinho, embora tenha esperança que algum dia venha a ser encontrado [o filme só é visível actualmente em transcrições vídeo]. Mas em Portugal há tanta coisa que se perde, que fica para trás… Também não me angustio com o futuro. Se fizer outro filme, farei. Já não tenho muita paciência para as minhas próprias angústias. Fiz um número razoável de filmes, mesmo que não sejam vistos. Mas eu sei que os fiz. Para mim isto já é uma satisfação. É claro que me posso perguntar se as coisas como me estão a correr hoje…
P- …tivessem corrido assim desde o princípio…
R- …mas nem vale a pena. Tenho-me divertido…
P- Deve ser das pessoas com um interesse mais intenso, e quase enciclopédico, no cinema português e nos seus recantos mais obscuros. É capaz de falar com profunda estima de um filme falhadíssimo dos anos 50, ou de uma produção amadora feita sabe-se lá onde… Para dizer que são maus, mas sem que isso impeça uma espécie de apreço. De onde é que isto vem? O que é que o interessa tanto nesta história alternativa do cinema português como falhanço?
R- Não é só no cinema…
P- Eu sei, mas circunscrevendo…
R- Por um lado, e genericamente, tenho tendência a comover-me com a “décalage” entre uma intenção e o resultado dela. Por outro, no cinema português há, ou havia, algumas pessoas que mesmo sem talento ou condições se entregavam ao que estavam a fazer com total convicção. O resultado podia ser péssimo mas era a vida daquelas pessoas. Para além disso, e por maus que sejam, pode-se sempre encontrar coisas interessantes nesses filmes. Pormenores de arquitectura, a maneira como as pessoas se vestiam. O esforço inglório de alguns actores, a darem o melhor de si e depois o filme não presta para nada… Às vezes há momentos fantásticos. Claro que é um bocadinho enfadonho estar a ver uma hora e meia para aproveitar trinta segundos. Mas pronto.
P- A sua geração, por discutível que seja o conceito de “geração” mas aceitemo-lo para definir o conjunto de pessoas que chegou ao cinema nos anos 80, teve imensas baixas e desaparecidos em combate. Quase se lhe pode chamar, a si, um “sobrevivente”. O que é que esta geração encontrou de tão especialmente difícil? Tem alguma explicação?
R- Havia um problema geral, que sempre houve: falta de espaço. As próprias condições de produção o ditam. Nunca houve um investimento sério para criar, não uma grande indústria que seria impossível, mas algum tipo de abertura. De entre a geração dos anos 80 muitos ficaram pelo caminho, de facto. Começava logo nos concursos do Instituto [Português de Cinema, então], onde só havia lugar para uma ou duas primeiras-obras. Havia aquelas pessoas ainda muita próximas, etariamente, da geração do Cinema Novo, o João Botelho, o Luis Filipe Rocha, o José Alvaro Morais, o Jorge Silva Melo, e a vida também não foi fácil para eles. Mas dos que vieram a seguir, durante os anos 80, muitos ficaram bloqueados, praticamente só o Pedro Costa, o Joaquim Leitão e a Teresa Villaverde é que conseguiram singrar. Pessoas como o Vitor Gonçalves, ou o Daniel Del Negro, fizeram filmes que como era habitual na época tiveram dificuldades em estrear mas foram muito projectados num círculo restrito, e isto também pode ser um bocado intimidatório por causa das expectativas que se criam. E muitos tiveram infortúnios de todo o tipo. Se quisesse ir por uma teoria da conspiração diria que esta conjuntura até podia ter sido gerida por pessoas ligadas às decisões sobre o cinema português, que optaram por estrangular em vez de abrir. E então pronto, tinha que haver vítimas e quem se aguentasse aguentava. Muitos dos filmes, mesmo cheios de fragilidades, não mereciam ter levado a pancada que levaram. Os primeiros filmes do João Canijo, por exemplo, aquilo foi complicado. Depois há o caso do [Edgar] Pêra, que é um caso de resistência. Em resumo, não consigo dizer: foi por isto ou foi por aquilo. Houve um conjunto de factores que atirou muita gente para fora da pista. E quando finalmente podiam estar em condições de recuperar o tempo perdido aparece uma nova geração. Voltar quinze ou vinte anos depois é sempre muito complicado.
P- Pensando nalguns casos dessa nova geração, o Joaquim Sapinho, o João Pedro Rodrigues, mesmo o Miguel Gomes, dá a impressão de que encontraram uma conjuntura menos agreste. Por outro lado, a vossa geração era uma geração de “filhos”, e estes já não são bem “filhos”. Até que ponto isto pode ser importante?
R- Acho que isso é realmente importante. Quer dizer, eu não sei se o Pedro Costa ou a Teresa Villaverde…
P- …se consideram “filhos”…
R-…pois, mas isto é um facto: nós ainda conhecemos os “pais”. Até pelos filmes isso se nota. Havia algumas referências em comum, até numa linha de continuidade com o cinema português. Querendo ou não, ainda estávamos muito ligados ao Paulo Rocha, ao António Reis, ao Fernando Lopes, ao João Bénard da Costa, ao Seixas Santos ou ao César Monteiro. Até mesmo, de maneira diferente, ao João Mário Grilo. Havia uma herança que era veiculada pela Escola de Cinema. Julgo que nestes, no Sapinho, no João Pedro, no Sandro Aguilar, no Miguel Gomes, há um despojamento maior. Outra abertura ao mundo.
P- Ao mesmo tempo, e não querendo transformar isto em psicanálise barata, nos vossos filmes sente-se a noção, ainda que inconsciente, de estarem a filmar dentro da “família”, sob o olhar do “pai”.
R- Nós apanhámos a geração do Cinema Novo ainda ligada a todos os lugares importantes, no IPC, na RTP… Eu por exemplo devo o meu primeiro filme ao Fernando Lopes, foi ele quem me convidou para os “Corações Periféricos” [a série onde se integrava “Um Passo, Outro Passo e Depois”]. E acho que este tipo de relacionamento criou uma espécie de constrangimento nos mais novos, que aliás era incentivado pelos mais velhos. Estou a dizer isto mas não implica que não tenha admiração, respeito e amizade, por muitos desses cineastas. Mas é um sentimento de dívida que os tipos de agora, que já não os apanharam nos lugares decisivos, não têm. Não lhes devem nada.
P- Quando “Xavier” teve uma sessão de ante-estreia na Cinemateca incluiu na folha de sala um poema de Jaime Gil de Biedma [“Príncipe da Aquitania, En su Torre Abolida”] que começa assim: “Una clara consciência de lo que ha perdido / es lo que le consuela”.  É tão fácil adivinhar que se identifica com este verso…
R- Ah, sim, sim. Isto pode fazer confusão a algumas pessoas, mas serve-me para avançar. OK, perdi certas coisas mas… é como na canção do [John] Cale, “never win and never lose” [“nunca se ganha e nunca se perde”]…
P- …ou na do Dylan, “there’s no success like failure but failure’s no success at all” [“não há triunfo como o falhanço, mas o falhanço não é triunfo nenhum”]…
R- As coisas equilibram-se. Mesmo quando perdemos muito ganhamos alguma coisa. E isto é importante.

LMO

terça-feira, 15 de abril de 2014

A moral da farsa

SEIS CONTOS MORAIS
De Eric Rohmer
Eric Rohmer, nascido em 1920, era o mais velho dos cineastas da “nouvelle vague”, e um pouco por essa razão, reforçada por outras (formação, interesses), como é confirmado por alguns episódios quase psico-dramáticos (o “golpe de estado” nos Cahiers encabeçado por Jacques Rivette), também o corpo mais estranho nesse bloco só superficialmente compacto. Era o mais culto de todos, em sentido convencional e mesmo propriamente “académico”, e o que tinha uma relação mais sólida com a literatura, por oposição ao diletantismo auto-didacta (não importa quão brilhante) dos sues colegas mais jovens. Ora se a literatura, e já estamos a chegar aos “Contos Morais”, foi a frustração, o “peso”, que conduziu os rapazes da “nouvelle vague” ao cinema (na célebre formulação de Godard, “como podíamos esperar escrever melhor do que Joyce ou Rilke?”), quem mais nela avançou foi Rohmer. Todos os seis “Contos Morais” começaram por ser projectos literários, escritos durante as décadas de 40 e 50, numa época em que Rohmer estava longe de imaginar vir a ser realizador de cinema. Muito mais tarde, já depois de estreados todos os filmes da série, os “Contos” foram publicados em livro (a edição portuguesa é da Cotovia), e no prefácio Rohmer fazia uma confissão de fracasso, com ironia “ma non troppo”: “se os filmei, foi porque não fui capaz de os escrever”. Morreu o escritor falhado, nasceu o grande cineasta.
Os “Contos Morais” também representaram a imposição (tardia, mais uma vez por relação com os parceiros de movimento) de Rohmer como realizador. Não deixa de ser curioso que um “fracasso” tenha remediado outro fracasso – este menos relativo e sem aspas: “Le Signe du Lion”, primeira longa-metragem de Rohmer, fora uma má experiência pessoal, passara sem grande atenção, e ainda hoje é provavelmente o menos conhecido dos filmes iniciais da “nouvelle vague”. Para resolver o impasse, Rohmer lembrou-se de puxar da cartola os seus devaneios literários da juventude. Com a ajuda do muito jovem Barbet Schroeder, que praticamente fundou a “Les Films du Losange” só para produzir o projecto de Rohmer, atirou-se aos “Contos Morais”, a princípio num artesanato quase amadorístico mas muito “nouvelle vague” (entre os primeiros filmes, “A Padeira de Monceau” e “A Carreira de Suzanne”, para todos os efeitos uma curta e uma média-metragem respectivamente, e os últimos, “O Joelho de Claire” e “O Amor às Três da Tarde” há uma gritante diferença de “aspecto”, ou se preferirem, de valores de produção). Os “Contos” ocuparam Rohmer durante todos os anos 60, entre 1963 e 1972 (apesar de ser uma década em que o cineasta fez muito trabalho para televisão), e garantiram-lhe definitivamente a notoriedade a partir dos terceiro e quarto episódios (“A Coleccionadora” e “A Minha Noite em Casa de Maud”, rodados e estreados por ordem inversa do seu posicionamento na série). Foi a primeira série de Rohmer, que depois repetiu esse princípio estruturante nos anos 80 (as “Comédias e Provérbios”) e nos anos 90 (os “Contos das Quatro Estações”).
“Serialista”, Rohmer é também um “geómetra” da narrativa. Todos os “Contos” assentam numa, chamemos-lhe, proposição triangular: um homem, uma mulher, outra mulher, de novo a primeira mulher. Profundo admirador de Murnau, Rohmer terá baseado estes movimentos em triângulo no arquétipo estabelecido pelo “Sunrise” do cineasta alemão – mas o certo é que (e visto que arquétipos são arquétipos) se pensa mais, durante o visionamento dos “Contos”, em variações sobre o modelo das “screwballs” americanas e das “comédias do re-casamento”. O humor, de resto, nunca está longe em nenhum dos “Contos”, autênticas comédias sem sinais exteriores de comédia, talvez com excepção do último, “O Amor às Três da Tarde”, que sendo o filme com o tom mais uniformemente grave é aquele em que com mais propriedade se pode falar em “re-casamento”. De resto, ao longo da série a faixa etária das personagens vai subindo: na “Padeira” e na “Suzanne” são miúdos, têm 18 anos, no último é um homem de meia-idade acometido de claustrofobia matrimonial.

Evidentemente, o tema central dos “Contos” é o desejo masculino, e a sua volatilidade face às circunstâncias. Não é a primeira vez, nem será a última, que citamos uma frase de Rohmer, homem demasiado antigo (e dirão alguns, demasiado reaccionário) para não desconfiar da psicanálise: “o inconsciente é o corpo”. Isto é a chave de muito Rohmer, e seguramente a principal chave dos “Contos”. Como lida o homem urbano, civilizado, “intelectual”, com as flutuações do desejo, com o aleatório dos sentimentos e dos acontecimentos? Obviamente, racionaliza: se os “Contos” são “Morais” é porque todos os protagonistas fazem um esforço para integrar tudo (as hesitações, os acasos, as vacilações) numa ordem de premeditação que tanto é uma âncora para a sua existência como a reivindicação de uma “superioridade moral” perante os outros (e as outras). Diz, resumindo quase todos os outros “Contos”, o jovem protagonista de “A Padeira de Monceau”, depois por um acaso em que não foi tido nem achado troca uma mulher por outra: “fiz uma escolha moral”. A história dos “Contos” é a história desta “moral”, uma “moral” que (talvez à excepção do caso do protagonista de “A Minha Noite em Casa de Maud”, que é quase um ensaio sobre a santidade) no fundo não é mais do que uma ficção essencial à sobrevivência, uma permanente “mise en scène” da negação. O génio de Rohmer é conseguir filmá-la dando a ver em cada plano uma situação e, ao mesmo tempo, a sua leitura: o “falsamente objectivo” e o “falsamente subjectivo” equivalem-se, andam de braço dado, habitam o mesmo corpo e o mesmo olhar. O corpo e o olhar do cinema, pois o que os “Contos” mostram é que, quando se trata de justificar o seu lugar num mundo entre mulheres, cada homem é um cineasta, cada homem inventa o seu filme, consigo no lugar do herói. O que eles projectam como drama, Rohmer filma como farsa (mas sem danificar o drama deles). Genial, claro. Mas mais importante do que isso, único. Rever os “Contos” é um prazer, descobri-los uma maravilha.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Speak to God

MARY
de Abel Ferrara

A religião não é uma novidade na obra de Abel Ferrara. A temática e o imaginário católicos cruzam, de modo mais ou menos central consoante os casos, vários dos seus filmes. É mesmo o ponto em que o cinema de Ferrara mais se toca com o de outro célebre ítalo-americano novaiorquino, Martin Scorsese (e não haverá muitos mais pontos de contacto para além destes: a origem italiana, Nova Iorque, e o Catolicismo). O grande filme católico americano dos anos 90, que no entanto não era um “drama religioso”, foi Abel Ferrara quem o fez; chamou-se “O Tenente sem Lei”, tinha uma freira que perdoava aos seus violadores citando palavras da Bíblia sobre os “necessitados”, e sobretudo tinha um Harvey Keitel em fantástica entrega, na pele de um Cristo moderno, louco, drogado e desamparado (ou, o que vai dar quase ao mesmo, na pele de um drogado louco e desamparado que se tomava por um Cristo moderno).

“Mary” é, mais ostensivamente, um “drama religioso”. Em termos narrativos, mas até em termos científicos. Vários investigadores e especialistas em estudos do cristianismo tomam a palavra no filme, nos segmentos correspondentes ao programa de televisão coordenado pela personagem de Forest Whitaker. Ferrara oferece-lhes um tempo generoso para as suas intervenções – não para caucionar, nem mesmo para “explicar”, mas para adensar: o que eles dizem é importante, quer na textura do filme quer enquanto olhar sobre o próprio filme. E isto porque, falta dizer, “Mary” se constrói usando por base o Evangelho apócrifo de Maria Madalena, descoberto no Egipto em 1945, segundo o qual Maria Madalena seria a principal discípula de Cristo, primeira intérprete do seu pensamento e das suas palavras. Já se escreveu que esse Evangelho, fazendo duma mulher a primeira depositária das palavras de Cristo, era algo de extremamente subversivo para a organização tradicional das instituições religiosas católicas, e a partir daí também se tem escrito sobre “Mary” como um filme “feminista” – o que, sendo possivelmente verdade, não parece ser a tecla mais importante para Ferrara.

Esses momentos “documentais” em que a palavra dos investigadores configura uma espécie de olhar sobre o filme mas exterior a ele são também importantes como sinal do funcionamento de “Mary”. Como se um filme em “porta giratória”, em “Mary” está-se sempre a entrar ou a sair de qualquer coisa. É talvez a principal marca distintiva da estrutura narrativa de “Mary”, com Ferrara, cujos piores (ou menos interessantes) filmes são sempre aqueles formalmente mais “limpos”, a arriscar uma construção em “manta de retalhos”, conciliando registos heteróclitos e aproximando matérias narrativas de vária ordem. “Entrar” e “sair”: se o filme entra e sai das vidas das suas personagens saltitando entre elas, também entra e sai (como dissemos) do programa de televisão de Forest Whitaker, ou do “filme no filme” que é aquele que a personagem de Matthew Modine, um realizador, tem pronto a estrear, baseado no Evangelho de Maria Madalena. Esta circulação, de resto, é anunciada na brilhante sequência inicial do filme: Binoche, uma actriz chamada Mary que interpreta o papel de Maria Madalena no filme de Modine, justamente apanhada no ponto em que já não quer (ou já não sabe como) sair. Acabou a rodagem mas ela recusa-se a sair da personagem, a abandonar a pele de Maria Madalena – problema de “encarnação” ou sua superação: Binoche não emprestou um corpo à personagem, ofereceu-lhe um espírito. Uma espécie de iluminação ou revelação, em todo o caso um “encontro”. Ferrara já filmou vampiros mas isto nada tem a ver com vampirismo, é apenas a fé como entrega absoluta, uma “entrada sem saída”, um “no way out”. Em vez de voltar para Nova Iorque, segue para Jerusalém.

Pressentem-se – é o risco assumido da “manta de retalhos” – vários filmes a acotovelarem-se dentro de “Mary”, como aliás já deve ter dado para perceber. “Mary” tem um lado “crítica do mundo moderno”, que usa a personagem de Binoche como contraponto. Algum desse “mundo moderno” talvez seja um bocado palha no contexto do filme, ou por outra, talvez se dê demasiado a ver como “sinalização” (e pouco mais) desse “mundo moderno” (as alusões ao conflito israelo-palestiniano, os boicotes da direita religiosa ao filme de Modine, etc). Mas integra, e isso é mais interessante, uma “crítica do espectáculo”, e é sobretudo aqui que a personagem de Binoche é um contraponto absoluto. Especialmente quando oposta à personagem de Matthew Modine, realizador meio poltrão, indeciso entre o prestígio “arty” e um estrelato a maior escala; tem-se visto, e é fácil ver, uma alusão a Mel Gibson e à sua “Paixão de Cristo”, mas Ferrara é alguém demasiado auto-punitivo para se excluir completamente a si próprio do retrato. Se Modine é a vaidade e a vontade de um “não comprometimento” tão grande quanto lhe for possível, Forest Whitaker completa o desdobramento: personagem em perda na vida pessoal, é alguém “sem lei” (como o tenente do outro filme) porque a perdeu, algures entre os desejos de grandeza e as tentações da carne. O protagonista “ferrariano” típico surge cindido nas duas personagens masculinas – e face a elas Binoche, a personagem feminina, na sua plenitude (e no seu “acordo”) de corpo e alma, é uma espécie de projecção ideal e idealizada, alguém intocável mas que por sua vez, pode tocar. E o mistério desse toque, de maneira não negligenciável, está no cerne de “Mary”. Como essa cena em que Whitaker, desesperado pela possibilidade de o seu filho recém-nascido morrer, fala com Binoche ao telefone e ela lhe pede (como o Johannes do “Ordet” de Dreyer) que experimente “falar com Deus”. Ele não sabe como se fala com Deus, responde “I can’t speak to God”. Mais tarde entrará numa igreja. “Como entrar” – é o grande tema, e a grande dúvida, de “Mary”.