terça-feira, 25 de novembro de 2014

Le Horla



Sonho com um "double bill" composto por The Thing, o filme de John Carpenter sobre um “inominável” (a “coisa”) e sobre os modos da sua impossível apreensão e revelação, e por Le Horla. Também no centro do filme de Jean-Daniel Pollet encontramos a “coisa”, a “coisa invisível”, não por acaso com origem literária na mais delirante escrita “fantástica” (não importa quão opiácea) de Guy de Maupassant. Em Le Horla, filme com apenas uma personagem, construído à base de "flash-backs" e "flash-forwards" (que aqui são acima de tudo uma maneira de saltar por cima do tempo, de o anular, de o tornar, por sua vez, “invisível”), onde praticamente não há "acção" mas apenas relato narrado para um gravador (ou ouvido a partir dele), a "coisa invisível" está destinada a permanecer enquanto tal: como no conto de Maupassant, a sua monstruosidade é, sem chegar a ser uma metáfora, uma figuração ou prefiguração da morte, o elemento imaginário (mas singularmente desprovido de imagem possível) que vem introduzir a angústia de uma extinção iminente. Num belo texto sobre o filme, Serge Daney escreveu que Pollet "filma entre a condenação e a morte: tudo é sobressalto, agonia próxima, última palavra antes do silêncio". Ainda segundo Daney, "para Pollet, cineasta do inexorável, fazer um filme consistiria em ganhar um pouco de tempo, em retardar um desfecho", sabendo sempre que a morte acabará por chegar e por se impor. Nestas palavras se resume admiravelmente a “dramaturgia” de Le Horla. Laurent Terzieff é o único, ou o último homem no mundo, entre recordações (a casa, e as cores, tão vivas, fortíssimos apelos aos sentidos, assim se constituindo em fortíssimos reflexos do que “ainda está vivo”) e ruínas (o magistral aproveitamento daqueles “bunkers” que os alemães construíram nas costas do Norte de França durante a II Guerra, sinal de uma presença humana que, no filme, é em si mesma um indício de exterminação). O que, no conto de Maupassant, era alucinação, produto de uma mente alterada, no filme de Pollet adquire uma substância muito mais concreta (dir-se-ia “objectivada”, em oposição à subjectiva primeira pessoa do Horla de Maupassant). Não há nenhuma razão para acreditar que Terzieff delire, nenhum juízo sobre a sua sanidade – porque o filme, mostrando-nos o mundo vazio, o mundo “que fica”, inevitavelmente a confirma. O gravador no barco amarelo (plano repetido, e porventura o plano decisivo) contém o registo da agitação e da resistência da personagem, um registo que de certa maneira é o próprio filme. O cinema, a fotografia, o som gravado, as “artes técnicas”: vã ilusão de uma permanência, visto que não há ninguém à vista para o receber em legado.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Sixteen Candles



Num texto recentemente publicado nos Cahiers du Cinéma, onde aproximava (ou afastava) os filmes de John Hughes e os filmes de Judd Apatow, Serge Bozon conta como o produtor de The Breakfast Club ficou decepcionado quando o realizador lhe mostrou pela primeira vez a montagem final desse filme: “it’s a piece of shit; it’s just a bunch of kids in school talking”. Esperava mais algum picante, e até tinha pedido muito explicitamente a Hughes (assim como Joseph Levine pediu a Godard, no Mépris, que mostrasse o rabo de Bardot) a inclusão de planos “com a professora de ginástica em topless”. Segundo o texto de Bozon, Hughes fez-lhe a vontade, mas de maneira tão propositadamente ridícula que foi o próprio produtor quem achou por bem retirar esses planos da montagem final, e ficar apenas com “a bunch of kids in school talking”.

The Breakfast Club foi o segundo filme realizado por Hughes, no ano seguinte ao da estreia com este Sixteen Candles. Se recuperamos a história contada por Bozon é porque ela resume dois aspectos cruciais dos filmes de John Hughes, pelo menos destes filmes iniciais (Candles, Breakfast, Ferris Bueller’s Day Off e Pretty in Pink, todos rodados entre 1984 e 1987) que ficaram como peças imbatíveis de uma “teen americana” para os anos 80: 1) por um lado, são filmes que trouxeram um novo modelo para o filme de adolescentes, que tinha então, por exemplo através da série dos Porky’s, o espectáculo da desbunda hormonal como princípio, meio e fim, e onde era obviamente indispensável haver professoras de ginástica (ou doutra disciplina qualquer) em topless; 2) sem excluir a desbunda hormonal, os filmes de Hughes alargaram o espectro do universo adolescente (até em termos de um retrato sociológico, que parece sempre justíssimo) a outros domínios, e tornaram-no matéria de reflexão para as próprias personagens – daí que, já em Sixteen Candles, e embora haja imensas peripécias, tudo tenda para se concentrar em torno de “a bunch of kids talking”. “Kids” que estão, no caso de Sixteen Candles, mais “preoccupied with sex” do que “occupied”, para glosar um memorável diálogo do The Moon is Blue de Preminger. Pormenor que faz toda a diferença. Mas acrescentaríamos ainda um terceiro aspecto, que também faz uma grande diferença pela sua raridade: um filme como Sixteen Candles aproxima-se de uma perspectiva feminina sobre a adolescência, tomada também como uma espécie de filtro que cria uma distância ao olhar sobre os rapazes. Não erramos por muito se dissermos que esta delicadeza foi inaugurada por Hughes. Sixteen Candles, de resto, quase nasceu por e para Molly Ringwald, a actriz “hughesiana” por excelência, que praticamente não teve mais carreira relevante para além dos filmes que fez com Hughes. Ringwald “nasceu” aqui, e o filme com ela. Começando pelo “casting” enquanto ainda não tinha um argumento definido, Hughes contou que só depois de encontrar Ringwald é que veio o resto: colou uma fotografia da rapariga na sua secretária de trabalho, e com ela a inspirá-lo escreveu, durante um fim de semana, o argumento de Sixteen Candles.

Sixteen Candles abriu assim uma obra curtíssima: a obra de Hughes como realizador são 8 filmes, rodados entre 1984 e 1991. Depois deles continuou a escrever e a produzir (nomeadamente Home Alone, a sua maior bomba comercial), mas como realizador foi só isto. Hughes (que morreu em 2009, aos 59 anos) era um “beatlemaníaco”, um daqueles que dizem que a vida “mudou” quando descobriu os Beatles e o Bringing It All Back Home de Dylan, e parece que durante as rodagens ouvia todos os dias, integralmente, um disco dos Beatles, como rotina de inspiração ou concentração. O seu impacto cultural não pode, em rigor, ser medido ao dos Beatles – mas também não pode por isso negar-se que a obra de Hughes teve, de facto, um impacto cultural: e se o espectador cresceu durante os anos 80, e está hoje à roda dos 40 anos, é muito provável que tenha sido tocado pelos filmes de Hughes ainda antes de ter ouvido os Beatles com ouvidos de ouvir. Os arrabaldes de Chicago (cenário de todos os filmes de Hughes) eram os arrabaldes de Chicago, mas havia ali uma universalidade qualquer que também dizia (e continua a dizer) respeito aos adolescentes de outras paragens, por exemplo Lisboa (que, já agora, só viu Sixteen Candles em 1988, recuperado pela distribuição portuguesa depois do sucesso de Breakfast Club e de Ferris Bueller’s Day Off). E essa universalidade, para os anos 80, ninguém a filmou como Hughes, ficou estampada nos seus filmes como em certas canções “pop” (que de resto abundam, em jeito de “malha”, na banda sonora de Sixteen Candles). Mas ainda a propósito de canções e dos Beatles, coincidência que é irresistível notar: a banda de Liverpool fez todos os seus álbuns em 7 anos, entre 1963 e 1970; o cineasta de Chicago fez todos os seus filmes também em 7 anos.


Coincidências é que não há nenhuma em Sixteen Candles. Tudo é premeditação, construção, maturação. Impressiona a quantidade de personagens relevantes, dos miúdos aos graúdos (os pais e os avós, estranhos mas não demasiadamente estranhos), e o facto de a galeria de personagens cobrir toda uma série de “tipos” sem nunca se converter em mera “tipologia”. Impressiona o trabalho de concentração temporal da narrativa – 24 horas, pouco mais – e ainda mais aquela longa noite de festas e desencontros onde há de tudo (excessos, hesitações, estupidez, sensatez, mas sobretudo uma enorme ansiedade e muito álcool), e depois o regresso à luz do dia, que não é a luz “fria” da ressaca antes pelo contrário, é a luz que como uma leve tontura vem banhar todas as personagens numa calma e numa aceitação que antes parecia impossível, como se o “coming of age” acontecesse assim, literalmente de um dia para o outro. Dezasseis velas, caramba: não tarda nada são adultos. Sixteen Candles é um dos  mais bonitos (e divertidos) adeus à infância que nos últimos 30 anos alguém fez, e o tempo só lhe caiu bem.

LMO

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Love With the Proper Stranger



O reencontro com um filme tão belo – entre ele e Baby the Rain Must Fall le coeur balance - como Love with the Proper Stranger não pode senão confirmar a especificidade e a delicadeza de Mulligan, e a que ponto a segunda (a delicadeza) decidia grande parte da primeira (a especificidade). Em absoluto, mas também em termos relativos, quando se trata de devolver Mulligan ao seu tempo (e a este tempo, os “early sixties” do cinema americano) e de o integrar no grupo de realizadores a que ele é normalmente associado (a chamada “geração da televisão”).

Se o “realismo” e a “rua” eram tendências cada vez mais vincadas no cinema americano dos anos 60, esta história nova-iorquina concilia-as (e tudo o que vem por acréscimo, em particular a matéria “social”) com uma justeza de tom que faz a ponte com as melhores tradições clássicas do melodrama e da love story – não é um acaso que o título do filme seja partilhado com uma canção de Johnny Mercer, e que dela seja extraída a expressão (“bells and banjoes”) que terá uma importância literal no desenlace (inesperado, divertido e comovente, tudo ao mesmo tempo), já depois de ter tido uma importância metafórica: “sinos e banjos” como arquétipo, ou estereotipo, de uma visão romântica do amor, importada do imaginário cinematográfico e musical. A canção de Mercer é, passe a expressão, uma “meta-lovesong”, uma “canção de amor sobre as canções de amor”, parecida com as que Stephin Merritt hoje compõe. E  o filme embebe-se do seu espírito, e da sua distância ao mesmo tempo desconfiada e comovida: Love with the Proper Stranger está sempre em zigue-zague, girando entre o cepticismo de quem não acredita nos “sinos e banjos” e a suspeita de que, como as bruxas, “los haya” – e de facto, eles aparecem, mesmo que para isso McQueen tenha tido que os enfiar pelos olhos (e ouvidos) de Natalie Wood adentro, naquela fabulosa sequência final que não nos deixa perceber se nos apetece mais rir ou se nos apetece mais chorar.

É certo, mas isso só mostra a subtileza de Mulligan, que tudo isto (os “sinos e os banjos”, justamente) só distrai a atenção sobre aquele que era suposto ser o “tema” do seu filme: o aborto. E claro, da mensagem inerente, timidamente “liberal”: o aborto deve ser uma escolha possível, sim, mas é melhor não a escolher, fazer um esforço para arranjar as coisas de outra maneira. A única hipótese de este subtexto medianamente moralizante ser contrariado era, justamente, tornar a “outra maneira” suficientemente difícil, mas também suficientemente verdadeira, para transformar a questão do aborto num mero detalhe narrativo. Coisa perfeitamente conseguida. Mas a este respeito, nada como citar as belíssimas palavras de Michel Mardore nos Cahiers, já depois de ter aproximado o filme de Mulligan do espírito do jovem cinema francês (algo que, como ele explica, não era “un mince hommage”): “Jamais cette lutte du mensonge et de l’amour (y compris la tendresse de l’auteur pour ses personnages) ne se relâche. Il faudrait citer en détáil les scènes (…) pour comprende comment un prêchi-prêcha se transforme, avec mille et une mines de rien, en une planche d’écorché vif, ou l’approche des larmes fait trembler le sourire de la cocasserie et du courage”.

Haveria de facto muitas cenas “qu’il faudrait citer en détail”: o primeiro encontro entre Wood e McQueen, onde ela já traz tanta coisa, e tão contraditória, no olhar; a maneira como, pelas cambiantes desse mesmíssimo olhar, percebemos que é na verdade dum reencontro que se trata, e que antes houve uma noite que ela não consegue esquecer e de que ele não se consegue lembrar; as personagens secundárias, de Edie Adams (a “Bárbara de Sevilha”, divertida “rima” para o apelido, Rossini, da família de Natalie) ao pretendente de Natalie Wood, esse solitário tão cruelmente varrido do filme, passando pela família italiana dela; a violência, crua e nua, física e moral, da cena na casa de abortos clandestinos; os jogos de sedução entre McQueen e Wood, mais o décor da loja de animais do Macy’s; o jantar que Wood, enfim “mulherzinha independente”, oferece a McQueen, com os beijos no sofá e o discurso decisivo (dela) sobre os “sinos e os banjos”; e no fim, obviamente, os sinos e os banjos (sem aspas, porque literais).


Mas preferimos dedicar as últimas linhas às duas verdades mais evidentes de Love with the Proper Stranger. Que McQueen, com os seus modos de boxeur abandonado, nunca foi tão comovente nem tão frágil. E que Natalie Wood (que foi filmada pelos melhores, Ford e Ray à cabeça) nunca esteve simultaneamente tão bonita e tão “real” – como diria Mardore, “ce n’est pas lá un mince hommage qui est rendu à Robert Mulligan”.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Matewan



Matewan foi um dos primeiros pontos altos na carreira de John Sayles como realizador de cinema. Oriundo das “oficinas” de Roger Corman, estivera ligado (como argumentista) a alguns filmes muito célebres de Joe Dante (com quem voltaria a colaborar), como Piranha ou The Howling (e pelo menos neste último título, a sua marca é tão importante como a de Dante). Matewan, a quarta longa-metragem que Sayles realizou, foi julgado suficientemente importante para constar da cerimónia dos oscars desse ano, através da nomeação (justíssima) para o prémio de melhor fotografia (a cargo do veterano Haskell Wexler). Nesses termos, foi de facto o primeiro filme “importante” de Sayles, que até então tinha dirigido algumas séries B (muito na linha de Corman) e apenas um filme de “série A”, Baby It’s You, uma comédia romântica com Rosanna Arquette, primeira (e quase única) experiência do cineasta com um grande estúdio hollywoodiano.

Foi, podemos dizê-lo, o momento em que se tornou plenamente evidente a dimensão política dos filmes de Sayles, característica que daí para a frente poucas vezes largou o seu cinema (um dos seus últimos filmes, Silver City, que em Portugal saiu directamente para DVD sem passar pelas salas, é uma brilhante sátira aos “anos Bush”). Centra-se num episódio sucedido em 1920 e passado à história como o “massacre de Matewan”, momento emblemático das lutas sociais nos Estados Unidos (neste caso, da luta pelos direitos dos trabalhadores, e especificamente, pelo direito dos mineiros de Matewan, pequena cidade da Virgínia, à sindicalização). Acabou tudo num banho de sangue, quando os mineiros e a comunidade local, com a cabeça em água, receberam à carabina o grupo de “detectives” (hoje, chamar-lhes-íamos uma espécie de segurança privada) com que a “companhia” proprietária de quase tudo o que havia em Matewan (das minas às casas dos mineiros) pretendia resolver o assunto – “the hard way”, como diz um deles – e remeter os mineiros às boas maneiras (comer e calar) que as ideias “socialistas” importadas da Europa tinham posto em causa. Depois do “massacre”, e como a narração “off” diz no final do filme, a “companhia” ainda encontrou uma forma de conseguir uma pequena vingança, mas é significativo que Sayles deixe esse detalhe para um posfácio não-visto, porque assim Matewan fica o contrário de um choradinho (como demasiadas vezes acontece em filmes de temática semelhante), que em vez de mostrar os trabalhadores como “vítimas” narra, sem paternalismo algum, o momento em que eles reagem – com ferro e com fogo, é caso para dizê-lo – contra as opressões e as injustiças.

Parece que Sayles, que escreveu o argumento sozinho, tomou algumas liberdades históricas, e em vez de escolher entre a “lenda” e o “facto” resolveu ficar com o melhor das duas coisas. A “lenda” e o “facto”: Sayles não é o mais fordiano dos cineastas, mas Matewan, e isto não pode deixar de ser um elogio, exala uma “justeza”, um sentido de decência elementar, na descrição da comunidade e das relações entre os seus membros (e das relações entre os seus membros e os “ogres” enviados pela empresa: a dupla Hickey/Griggsy é um bocado como Liberty Valance e os seus capangas), que torna pertinente a lembrança de Ford. E já agora, quão estoicamente fordiana é a sequência em que o jovem pregador (Will Oldham, futuro Bonnie Prince Billy, um dos grandes “songwriters” americanos da actualidade) se serve de uma parábola bíblica para, durante uma cerimónia, avisar os seus camaradas da injustiça que estão prestes a cometer. A galeria de personagens, de resto, é fenomenal – o sindicalista “red” de Chris Cooper, o esquivo, mas tão corajoso, polícia de David Strathairn, a silenciosa Mary McDonnell, a infeliz Bridy Mae de Nancy Mette… E todos os secundários, incluindo os grupos de negros e italianos (que a “companhia” trazia para as minas para baixar os salários a toda a gente), que o filme trata como “nuvens” sem ao mesmo tempo impedir que eles se individualizem e se humanizem (e algum humor, um pouco… fordiano, na maneira como o filme trata as tensões entre os brancos, os negros e os italianos).


São imensas personagens importantes, de facto, e esse é um elemento tipicamente “saylesiano”: quem é o “protagonista” de Matewan? Cooper, Oldham (a quem, percebemos claramente no final, pertence a voz da narração “off”), Strathairn, McDonnell?... Ou é o “grupo”, a comunidade, em todas as suas harmonias e contradições? Dominando plenamente, como é seu hábito e traço distintivo, a montagem paralela, Sayles constrói o filme numa particularíssima gestão do tempo narrativo, sempre em “atraso”, sempre preferindo a “simultaneidade” da acção à sua ostensiva “progressão” – como outros filmes de Sayles, ou escritos por ele (o The Howling de Dante também é assim), em Matewan parece que se avança mais para os lados do que para a frente. Mas também é isso que torna tão poderosa – como uma descarga de energia acumulada, que apanha o espectador no seu próprio desejo de maniqueísmo – a cena do “shoot-out” final.

LMO

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Blind Date



Blind Date pode ser um filme “tardio” de Blake Edwards, mas o que ele propõe é uma espécie de retorno aos fundamentos do burlesco cinematográfico, por um lado, e aos fundamentos da comédia “edwardsiana”. Que é como quem diz, a duas palavras: “disrupção” e “destruição”. Como The Party, mais que provavelmente o supra-sumo da obra de Blake Edwards, muito bem mostrou, para o cineasta os bons cenários e adereços são os cenários e aos adereços que se podem partir, subverter, destruir. Uma boa maneira de ver Blind Date é ir contando mentalmente a quantidade de “props” que são destruídas – dos bolsos dos casacos (sequência do jantar com o empresário japonês) a portas e vidros de automóveis. Tudo é para partir, literalmente, até a cama de Kim Basinger, na cena em que Bruce Willis a reencontra depois da noite demolidora (em todos os sentidos) que passaram juntos: e é justamente por não haver nenhuma razão dramática para que os pés da cama se partam, deixando-a inclinada, que a cena é genial – porque isso permite a Blake Edwards filmar Kim Basinger a escorregar colchão abaixo e colchão acima, e esse deslizamento constante torna-se o núcleo da cena, muito mais do que o diálogo mantido pelas personagens (pouco depois de ver o filme já ninguém se lembra do que é que eles disseram, mas toda a gente conserva na memória a imagem de Basinger a debater-se com a inclinação do seu colchão).

E a “disrupção”, a perturbação, o grão de areia que vem catalisar e promover a desordem, mesmo quando não é o seu agente directo. A personagem de Basinger, nesse sentido, é perfeitamente edwardsiana, conjunção do Inspector Clouseau e do Hrundi V. Bakshi (a personagem de Peter Sellers em The Party) num corpo feminino. É ela, com a sua fraca tolerância ao álcool, que lança o caos na vida do pobre Willis e de todos os outros com quem se cruza – antes de, na sequência final, quando é a vez dela ser a “pobre” Basinger, forçada a um casamento que não deseja, ser resgatada por Willis exactamente através das mesmas armas: o caos e a confusão instalados no que devia ser uma mera formalidade (a cerimónia nupcial). Estamos, portanto, num território de subversão total, um território físico e social que só existe enquanto domínio pronto a ser subvertido – este é todo o princípio subjacente a Blind Date, o que mostra bem como, em 1987, Blake Edwards continuava a ser Blake Edwards.

Para mais, com as ressonâncias sociais muito concretas que lhe advém da época em que foi feito, aqueles anos 80 que foram, na América, a década “yuppie”. Blind Date partilha ligações muito concretas com outros filmes desses anos, que também jogaram aquele pragmatismo, muito cinzento e muito certinho, duma personagem “yuppie”, contra o poder desregulador de outra personagem, normalmente feminina (um parentesco evidente de Blind Date é o Something Wild, de Jonathan Demme, quase contemporâneo; outro podia ser o After Hours de Scorsese, realizado um par de anos antes).

Subversão, ainda, no muito pouco politicamente correcto (já naquela altura, hoje mais ainda) papel do álcool nesta história. Blake Edwards (no primeiro Pink Panther), já tinha feito o maior “gag” da história com champanhe e garrafas de champanhe. Aqui o champanhe, mola para o descontrolo de Basinger, tem outra um vez papel primordial, e e toda a primeira parte de Blind Date é pura “comédia alcóolica” encenada sem qualquer moralismo ou advertência. Ironia, ainda mais se pensarmos que, nos anos 60, em Days of Wine and Roses, Edwards abordara o álcool e o alcoolismo de maneira série e, evidentemente, muito mais dramática.


Claro que, perante tantos e tão grandes exemplos do superlativo talento de Blake Edwards, dizer que Blind Date, filme um tanto “lasso” e com vários momentos bastante indiferentes, emparelha com o melhor da obra do realizador seria um pouco exagerado. Mas os momentos perante os quais a indiferença é impossível valem bem o resto: cenas ou sequências como as do primeiro encontro Willis / Basinger, com as luzes a apagadas a retardarem a revelação do rosto dela, as do caótico jantar com o japonês ou a da noite que precede o casamento não deixam dúvidas: sim, Blind Date é um filme do mesmo cineasta de Pink Panther ou The Party, e a mão dele está aqui inteirinha. No final dos anos 80 já não se fazia muito disto.

LMO

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O Cinema tem espinhas - conversa com Aki Kaurismaki



Aki Kaurismaki, finlandês, cinquenta anos, já tem uma costela portuguesa. Há muitos anos que passa cá o Inverno, numa casa no Minho. Chega por volta de Setembro ou de Outubro, e volta para a Finlândia no princípio da Primavera. Duas coisas denunciam imediatamente essa costela: um muito razoável domínio da língua portuguesa, embora para a entrevista propriamente dita prefira conversar em inglês; e, sobretudo, um emblemazinho do Futebol Clube do Porto ostentado na lapela. Uma vez, há cerca de dois anos, iniciou a apresentação de um filme seu na Cinemateca perguntando quantos portistas havia na sala – a sua filiação clubística portuguesa é algo que ele leva a sério. Os assuntos desportivos irromperam diversas vezes durante a conversa que mantivemos com ele a propósito da estreia do seu mais recente filme, “Luzes no Crepúsculo”: Kaurismaki é um conversador inteligente e divertido, lacónico e caótico, e apreciador da cumplicidade.

É pelo desporto, aliás, que Kaurismaki resolve um eventual problema de identidade. “Fui ao estádio ver o Finlândia-Portugal em Helsínquia [jogo de qualificação para o campeonato da Europa de futebol]. Tinha numa mão uma bandeira da Finlândia e na outra uma de Portugal. Mas quando o jogo começou o sangue falou mais alto e comecei a torcer pela Finlândia. Acho que no Dragão [o Portugal-Finlândia de quarta-feira, de que o leitor já saberá o resultado] vai acontecer o mesmo”. Conversa puxa conversa, mas não necessariamente em sequência, outro assunto desportivo caro a Kaurismaki e aos finlandeses em geral, o automobilismo, ainda veio à baila. “Era estúpido tirarem-lhe o título [a Kimi Raikkonen, finlandês campeão do mundo de fórmula 1 em 2007, cujo título ficou durante algumas semanas pendente da investigação dum imbróglio técnico-legal] por causa daquilo, não era?”. (Julgámos ver-lhe um olhar reconfortado quando concordámos com ele). “Por que é que somos tão bons nos automóveis? Porque somos estúpidos: sabemos que está ali o pedal do travão mas preferimos ignorá-lo”.

Mas não era para falar de futebol e de fórmula 1 que ali estávamos. O assunto era “Luzes no Crepúsculo”, terceiro tomo de uma trilogia iniciada em “Nuvens Passageiras” e depois continuada em “O Homem sem Passado”. Ou, como Kaurismaki, prefere chamar-lhe, “a sexta parte de duas trilogias”. Uma para os anos 80, terminada com um dos seus filmes mais célebres, “A Rapariga da Fábrica de Fósforos” (1990), outra para os anos 90 entrando pelo século XXI. São filmes, e trilogias, sobre os deserdados do “sonho finlandês”, sobre aqueles que ficaram esquecidos pelo chamado milagre económico finlandês que teve a Nokia por ponta de lança. Personagens extraídas àquilo a que antigamente se chamava a “classe operária” ou o “proletariado”. Diz Aki: “Já ninguém lhes chama assim, mas eles ainda ‘operam’, não se tornaram capitalistas”. E têm, aparentemente, cada vez menos espaço – em “Nuvens Passageiras” as personagens abriam um restaurante bem sucedido, em “O Homem sem Passado” o protagonista refazia a vida depois de uma crise de amnésia, mas a personagem principal de “Luzes no Crepúsculo” está sempre a bater contra a parede, nada lhe corre bem e acaba num ermo. “É minha ideia acabar as trilogias assim, com filmes rápidos, bruscos e tristes, praticamente sem humor nenhum”. Ao contrário de “O Homem Sem Passado” (que era uma “comédia”, embora se possa pensar que no cinema de Kaurismaki a diferença entre uma comédia e um drama depende de pormenores minimais), “Luzes no Crepúsculo” é trágico e pessimista como um conto russo. Na primeira cena, o protagonista ouve a conversa de três tipos que descem a rua a conversar sobre escritores russos, como se decidissem qual deles o mais desesperado – e fixam-se em Pushkin que (dizem eles) “mal nasceu já estava morto”. É um aviso, um anúncio, para a personagem e para os espectadores? “Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia. Escreva que sim. É um aviso”.

Mas o espaço, o urbanismo e a arquitectura imaculadamente modernas, brilhantes e envidraçadas de Helsínquia, algures entre o “Alphaville” de Godard e o “Playtime” de Tati – este espaço também é um protagonista do filme. “A minha ideia era que a personagem fosse sendo sacudida e cuspida, rejeitada pelo cenário. Já não há lugares em Helsínquia. A única hipótese é o campo, mas mesmo ele já foi estragado. Vocês têm sorte, aqui em Portugal ainda há alguns lugares”. Nos filmes anteriores, Kaurismaki encontrava e filmava uma espécie de “traseiras” desta nova Helsínquia, havia um refúgio para as personagens. Em “Luzes do Crepúsculo” o monstro urbano engole-as. “Helsínquia tornou-se uma cidade feia, mas feia num sentido mesquinho [‘in a small way’]. Quanto maior, mais provinciana. Não me incomodam os lugares feios, aliás gosto de lugares feios. Mas aborrecem-me os lugares feios e chatos. E filmei na parte mais chata de Helsínquia. Até fui supreendido, porque escrevi o filme aqui em Portugal, e quando fui para Helsínquia essa parte da cidade tinha-se tornado ainda mais chata do que o que era. Acho que quem vê o filme percebe que há melhores cidades para se ir passar férias”. O pessimismo de “Luzes no Crepúsculo” é reforçado pelo facto de Kaurismaki não conceder à sua personagem a bênção de partir para outro lugar no fim do filme. “Este estava demasiado ferido, demasiado espancado. Mas dei-lhe o amor, isso não basta?” Kaurismaki está-se a referir ao último plano do filme, muito bonito e muito curto – as mãos dadas do protagonista e da rapariga que não o abandona (e é um plano curtíssimo, dos mais curtos planos finais que já vimos – “filmei em Junho e só havia vinte minutos de escuridão em Helsínquia”, diz Aki, “não volto a filmar em Helsínquia no Verão, a menos, claro, que queira o Verão”). O realizador pensou mesmo matar a personagem (“penso sempre em matar as personagens, mas depois comovo-me e não consigo”), e filmou dois finais, com morte e sem morte, e para a última sequência acabou por usar material de ambos. Em todo o caso, o pessimismo nem permite a provocação – como em “Sombras no Paraíso” (“o meu filme mais optimista de sempre”), que terminava com os protagonistas a apanharem um “ferry” para a Estónia (então, anos 80, parte da URSS). “Era uma maneira de dizer que tudo era melhor do que ficar na Finlândia. E era uma citação de um filme finlandês dos anos 50, que acabava com as personagens num ‘ferry’ para a Suécia. Nessa altura muitos finlandeses emigravam para a Suécia”.

Mas esta Finlândia existe mesmo, ou corremos o risco de a confundir com aquilo a que Peter von Bagh (ex-director da cinemateca finlandesa, crítico, historiador e enciclopedista) chamou uma vez a “Kaurismakilândia”, espécie de manto lançado por Aki sobre o país e os seus lugares, mas não necessariamente coincidente? “Não sei dizer. Estou demasiado dentro. É como quando as pessoas me perguntam se o meu humor é finlandês. Respondo que deve ser finlandês, visto que eu próprio sou finlandês”. O que não o impede de falar do seu país como de um marasmo letal. “Nós nem temos nada a que nos opor, politicamente. É uma coisa que faz muita falta. Mas até os nossos políticos são desesperantemente honestos. Não roubam, não são corruptos. Quer dizer, roubam, mas dentro da legalidade”. Esse marasmo ajuda a perceber histórias como a do miúdo que há poucas semanas disparou indiscriminadamente sobre colegas e professores do seu liceu? “É uma história muito triste. Mas acho normal. Se queremos importar a cultura americana temos que importar tudo. Não podemos importar só o lado bom”.

Aki não faz, de resto, muita fé na juventude. Perguntamos-lhe pela sala de cinema que detém, em sociedade com o seu irmão Mika (igualmente cineasta), em Helsínquia. Durante anos tentou manter uma programação alternativa. Mas sem viabilidade comercial. “É impossível. A sala está aberta, mas quase só para festivais e coisas do género. Há uns tempos exibimos um programa duplo de Jean Vigo, com ‘Zero de Conduite’ e ‘L’Atalante’, mas não dá. Aparecem alguns, mas não em número suficiente. É mais fácil comer um hamburger. O cinema tem espinhas, é complicado”. Por falar em coisas fáceis de mastigar, lembramos Aki de que uma das mais bizarras ocorrências no cinema mundial dos últimos anos foi o ouvir o seu nome ser pronunciado em plena cerimónia dos óscares, quando “O Homem sem Passado” foi nomeado para melhor filme em língua estrangeira. Kaurismaki põe um ar envergonhado: “Não pude evitar. O filme tinha uma participação da Finnish Film Foundation, que é um organismo estatal e para eles era importante, hoje toda a gente vive obcecada com os óscares. Eu nem fui lá, não quero saber daquilo para nada”. Kaurismaki tem uma ideia muito precisa sobre o que não gosta na Hollywood contemporânea. “Nos anos 40, as estrelas eram adultos, hoje são crianças grandes. Quando se pensa que, por exemplo, James Stewart esteve na II Guerra Mundial, a pilotar bombardeiros sobre a Alemanha…”. De facto, é totalmente irrealista imaginar Brad Pitt a ir para o Iraque e a voltar com o cabelo grisalho – realmente grisalho, como o Stewart de depois da guerra, não a patética “make up” de “Babel”. “Brad Pitt, pfff… James Stewart comia ‘starlets’ como ele ao pequeno almoço”.


Lee Marvin, esse sim, era um homem. Kaurismaki rebusca a carteira, à procura do cartão de membro dos “Filhos de Lee Marvin”, sociedade secreta (“ninguém sabe ao certo quantos membros tem”) de que primeiro se ouviu falar há uns vinte anos, anunciada por Jim Jarmusch (Nick Cave, Tom Waits, John Lurie, são supostamente outros membros, mas nada disto é certo, para além de ser secreto). Mas não encontra o cartão: “aposto que o Peter von Bagh mo roubou, porque foi a última pessoa a quem o mostrei”. Terá que ficar para a próxima. Provavelmente numa altura em que “já teremos vendido o Quaresma e o Lucho – os presidentes dos clubes de futebol deviam ser todos despedidos”.

LMO (em 2007; como o tempo passa)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

L'Argent



Entrevistado por Michel Ciment, que lhe perguntou como acontecia a decisão de aproveitar determinada história que estivesse a ler como base para um filme, Robert Bresson respondeu: “No caso de A Nota Falsa soube imediatamente. Vi o filme imediatamente, porque a história se relacionava com a minha vontade de fazer um filme sobre uma reacção em cadeia conducente a um grande desastre. Uma nota de banco que acaba por assassinar uma quantidade de gente. Porque é que Julien Sorel matou Madame de Renal [personagens d’O Vermelho e o Negro, de Stendhal]? Saberia cinco minutos antes de o fazer que o ia fazer? Claro que não. Que aconteceu nesse momento preciso? As forças da rebelião libertam-se subitamente no interior de um indivíduo, todo o ódio escondido que se vai acumulando lá dentro. Interessava-me mais o relato que Tolstoi fazia disto do que as suas ideias religiosas (…)”. Na mesma entrevista, mas noutro ponto (anterior, curiosamente), explicou como e porquê se afastou da história de Tolstoi: “Há uma altura em que me liberto completamente, como um cavalo com a rédea solta, e deixo a minha imaginação conduzir-me aonde quiser. A história de Tolstoi é bastante diferente [do filme]. (…) No princípio Tolstoi refere-se a Deus e aos Evangelhos. Não podia seguir por aí porque o meu filme é sobre a indiferença inconsciente dos nossos dias, em que as pessoas só pensam nelas próprias e nas suas famílias”.

Não sendo, obviamente (quando se trata de um filme como L’Argent), as únicas pistas possíveis, Bresson apontou e “autorizou” assim aquelas que foram (e são ainda) as duas principais pistas seguidas por exegetas e comentadores da sua obra e, em particular, deste seu derradeiro filme.

Por um lado, o irracional, o inexplicável, a explosão (o “grande desastre”) que se segue a uma “reacção em cadeia” – algo que, por definição, tem a ver com a física ou com a química, com a ideia de um mecanismo autónomo e auto-suficiente, que pelo menos uma vez posto em marcha escapa a qualquer controlo ou vontade humana. Evidentemente, não somos os primeiros, nem seremos com certeza os últimos, a associar por este tema Le Diable Probablement e L’Argent, como se os dois últimos filmes de Bresson olhassem um para o outro, com possível extensão a Au Hasard Balthasar, que tem uma estrutura a vários títulos aproximável da de L’Argent, partilhando aquilo a que alguns comentadores chamaram uma “estética do caos” (e que, no fim de contas, é apenas outro nome para a “reacção em cadeia” descrita por Bresson).

Por outro, a questão social, ou o tema da sociedade descrita (e criticada) como frio mecanismo triturador de indivíduos, com o dinheiro como móbil (Bresson também falou disso: “tudo o que importa a toda a gente é o dinheiro”). Que prato pesa mais na balança de L’Argent? A “metafísica” ou a “política”? Será possível dissociá-las ou, neste caso concreto, enformam-se uma à outra? Há um texto muito curioso (e, eventualmente, muito contestável) de Alberto Moravia que propõe, com bastante originalidade, a interligação dos dois termos. Partindo do pressuposto de que em L’Argent “o mal” era “a própria existência do dinheiro, independentemente de ser falso ou não”, Moravia concluía que Bresson encontrava “o bem”, em referência às sequências de Yvon com a família rural, “nas antigas virtudes da civilização francesa, aquela tradicional mistura de rigor, análise e racionalismo – a marca distintiva do génio nacional. Por outras palavras, o ‘bem’ transforma-se em ‘estilo’. Daqui chegamos à curiosa conclusão de que o mal se encontra na vida, enquanto o bem está no modo como essa vida é representada. O machado sangrento com que o assassino mata as suas vítimas é um objecto mau, mas a imagem do machado é benéfica. Em resumo, o estilo exorciza o mal”.

É interessante que Moravia use o machado como exemplo para ilustrar a questão do “estilo”, porque os planos dos assassínios (o machado propriamente dito, a elipse do candeeiro e das manchas de sangue no papel de parede) estão entre os mais “estilizados” de L’Argent. O “humano” quase desaparece, ficam os objectos (o machado) e as marcas do seu trabalho (as manchas de sangue). Como se fosse uma maneira de mostrar um “mal” em abstracção, algo que não está nos homens mas se serve deles, que faz deles “veículos”. Em termos figurativos, o “estilo” talvez não seja o que “exorciza” o mal mas o que permite a sua representação e, de alguma maneira, a sua objectivação. Nesse sentido “utilitário”, desde os que mentem em tribunal aos que são mortos, passando por aquele que mata (Yvon), todos são vítimas.


Vítimas, e sem redenção. Bresson disse que gostaria de ter filmado a redenção de Yvon mas que isso “estragaria o ritmo do filme”.  Que se conclui assim – e não esqueçamos, também a obra de Bresson, mesmo que não tenha sido um fim premeditado – com um dos mais terrificantes planos de todo o seu cinema. Levado pela polícia, Yvon sai de campo, e a pouca luz do plano é logo a seguir cortada pelo “negro” final, sem música e sem genérico de fecho. Ou seja, uma espécie de “nada”. Não há nenhum “drôle de chemin” que leve Yvon para junto de quem quer que seja. Jeanne, a possível Jeanne de Yvon, foi-se embora a meio do filme, estava Yvon na prisão como Michel em Pickpocket.

LMO

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Casa de Lava



Everything good dies here, even the stars

Quando Casa de Lava estreou em 1995, ninguém, nem mesmo os que imediatamente o reconheceram como um título capital, podia imaginar o rasto – o rastilho – que este filme deixaria na obra de Pedro Costa. Esse rastilho ainda não deixou de arder, como sabe quem tem acompanhado essa obra, e como pôde confirmar quem já tiver visto o último filme de Costa, Cavalo Dinheiro. Mas em 1995 era inimaginável a consequência que Casa de Lava teria, ou a descendência: num certo sentido que não é preciso rebuscar muito, quase o que tudo o que Costa fez entre Ossos e Cavalo Dinheiro é um “filho” deste filme.

Rebuscando um bocadinho mais, aqueles planos do vulcão em erupção, o fogo na Ilha do Fogo, que abrem Casa de Lava (e que são extraídos a Erupção da Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro), têm hoje um duplo sentido: não anunciam apenas a natureza de um território específico, a ilha caboverdeana onde o essencial do filme decorre, anunciam também essa “lava” que Pedro Costa ainda não deixou de trabalhar. O espectador que nunca tenha visto Casa de Lava, mas conheça a obra posterior do realizador, não deixará de se espantar com a quantidade de coisas – por exemplo a carta dos “cem mil cigarros” – que aqui se prefiguram ou que depois serão liminarmente repetidas ou re-enunciadas noutros filmes.

É um filme que “corta”, evidentemente, assim como o som dos violinos (o primeiro som do filme) vem cortar o silêncio que nos primeiros instantes acompanhara as imagens do vulcão. Pedro Costa referiu, ao longo dos anos e por várias vezes, a que ponto Casa de Lava representou uma tentativa de “fuga” ao cinema, às suas convenções de produção e de narração, e até em termos de fuga a um imaginário, estritamente português e interiormente português, que ainda era o de O Sangue, a sua belíssima primeira-obra. Por acaso ou não, se esse desejo de “fuga” está estampado em Casa de Lava, também está o seu reverso, a “atracção”. Todo o filme, mesmo narrativamente, vive desta tensão inexorável – a história de Inês Medeiros, a história de Edith Scob, a história de Isaach de Bankolé, a história de todos aqueles que sonham em partir e vir viver para Sacavém. Mais que um vulcão, é de um campo magnético que se trata, da “descrição de uma ilha” como um implacável centro de gravidade – tão implacável que, no princípio da história, começa por “chamar” Leão do alto de um andaime. Mas implacável também nessa relação com o cinema, a que volta sempre: se Pedro Costa começou pelo desejo, mais ou menos “lato”, de fazer um “remake” de I Walked With a Zombie (de que ficou, mais do que um “remake” da narrativa, a evocação de um ambiente, a evocação de uma “ilha dos mortos” como a que o filme de Tourneur também citava, um sítio onde “tudo é que é bom morre, até as estrelas”), da sua matéria constam ainda alguns outros encontros, ou algumas outras atracções: é, por exemplo, a presença de Edith Scob na mais “exógena” das personagens de Casa de Lava, que foi os “olhos sem rosto” de Franju e que aqui é, não só mas também, uma máscara, ou toda a sequência com Inês de Medeiros pela encosta do vulcão acima, sequência que é também uma espécie de “remake”, ou de evocação colorida (“rouge et noir”, vermelho contra preto) do final do Stromboli de Rossellini, outra filme de uma ilha como campo magnético e possessivo.

Diríamos que este movimento, ou esta colisão entre movimentos, está presente também no filme no modo como ele se relaciona com uma “verdade” histórica e social. Ficar com ela – com o passado português, o Tarrafal e a “morte lenta”, com o presente das grandes cidades portuguesas, essa Sacavém que depois Costa viria a encontrar no Bairro das Fontaínhas – ou abandoná-la, e partir rumo a um domínio de “fantasmas”. Também sobre isto gira Casa de Lava, e talvez seja mesmo o seu essencial: um encontro entre a “terra queimada” e os espíritos que dela brotam. No seu mais feliz, o encontro consubstancia-se na música, e nas maravilhosamente escuras cenas com as “mornas”.

LMO

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Les Cinéphiles (I & II)


Eis os dois primeiros filmes da série Les Cinéphiles. Não são a única, nem foram a primeira, experiência de Louis Skorecki como realizador de cinema, mas são seguramente a mais famosa. Até por, de algum modo não muito rebuscado, serem filmes que partem também do lugar do espectador – do crítico – que Skorecki foi durante décadas, e por não ser difícil encontrar ecos, ligações, sinais de luzes, entre o seu pensamento escrito (antes e depois de 1988) e algumas coisas – algumas ideias, algumas conversas, mas sobretudo algumas emoções – presentes nestes filmes. Concebida como um par de filmes, a série só se tornou verdadeiramente uma “série” há poucos anos, quando Skorecki filmou uns Cinéphiles 3, e logo a seguir, aproveitando material não utilizado na montagem desse “episódio”, um Retour des Cinéphiles.

Louis Skorecki filmou Les Cinéphiles em 1988, sensivelmente dez anos depois da publicação, nos Cahiers du Cinéma, de um dos seus mais célebres artigos, Contre la Nouvelle Cinéphilie (artigo que ele “passou” a filme, artesanalmente, por volta de 1984). Se em 1978 aquilo que Skorecki entendia por “cinefilia” era já algo que ele considerava perdido, ou pelo menos irremediavelmente transformado, em 1988 estaria como? Não é pergunta de somenos, quando se constata que Les Cinéphiles 1 e 2 (tratá-los-emos como um só filme, pesem as diferenças que mais tarde assinalaremos) vivem absolutamente no presente, no presente de 1988: fala-se das Asas do Desejo, de Carax e de Jarmusch, descobre-se em comum uma aversão por Alan Parker, há mesmo uma desgraçada que gostou muito do “bleu” do Grand Bleu. Não é uma evocação nem uma reconstituição de um “tempo da cinefilia”. É uma encenação (ambígua) de uma ideia de cinefilia (ou é esta ideia, e não a encenação, que é ambígua), recortada num cenário realista e contemporâneo, que faz o “tour” por algumas salas de cinema (a mais reconhecível, embora Skorecki apenas filme “indícios”, a da Cinemateca Francesa quando era em Chaillot) indispensáveis no roteiro cinéfilo de Paris. Uma Paris, de resto, quase “despovoada”, sem personagens falantes que não sejam as que pertencem à “tribo” filmada por Skorecki. Nalguns planos, vem-nos a memória daqueles filmes de ficção científica (como o Five de Arch Oboler) sobre um tempo pós-apocalíptico em que… não sobrou ninguém. Numa cena, um grupo de personagens está diante de um cinema que, dizem, tem há décadas o mesmo mobiliário, os mesmos estofos, e passa… os mesmos filmes. Ou seja: a ruína intacta, a ruína que é ruína porque não mudou. A ambiguidade desta evocação da cinefilia talvez não tenha melhor síntese do que nessa cena, coberta de solidão (solidão das personagens e solidão dos lugares).

O deserto parisiense amplia a tristeza, a vaga tristeza que se vai anunciando por entre os diálogos e por entre os gags, e que se adensa no episódio 2 (o que fala de um “desaparecimento” e não, como o episódio 1, de um “regresso”), o que abre com a música de Pinchik (no 1 não havia música alguma), lindíssima de melancolia indefinível (Skorecki voltaria a ela para o episódio 3 e para o Retour). Por que desapareceu Eric? Ninguém sabe. Sabemos que há quem – a rapariga que o procura desesperadamente – lamente muito o seu desaparecimento (mas a outra rapariga, a que gosta do Grand Bleu, não está disposta a ajudar na busca). Num plano, vemos Eric transformado em fantasma, obra e graça de um rudimentaríssimo “efeito especial”. Eric a disparu (é tudo). Outros vão, provavelmente, desaparecer em breve, como André, o que observa que as pessoas que entram na Cinemateca “têm o ar de quem está a entrar num crematório” e nos últimos minutos quer sair de Paris, cidade onde não se pode ir a um jantar sem que os temas de conversa sejam “Carax, Beineix e Godard”. Aqueles planos no terraço do Libération, ligeiros contrapicados com as nuvens por fundo (voltar-se-á, em futuros filmes de Skorecki, ao terraço do Libération), são já planos do fim do mundo.


Tristíssimos, estes Cinéphiles são também divertidíssimos. Impossível separar os dois lados. Praticamente todas as cenas são construídas em torno de diálogos, por onde passam manias cinéfilas, pequenos “éclats” teóricos, “slogans” e manifestos, “private jokes” (as referências a “la revue”…). “Tu m'avais dit que’elle était plutôt Rohmer mais je la trouve plutôt Sacha Guitry”, diz Jean de uma rapariga a quem é apresentado – e há toda uma “imago mundi” por detrás de frases como estas. Como já se tinha percebido na história de Esther, a que “vai ao cinema com qualquer um”, é aí, a uma “imagem do mundo”, a uma “compreensão do mundo”, que Skorecki quer chegar.

LMO

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Memoirs of an Invisible Man


Memoirs of an Invisible Man é, em toda a sua obra, o filme de que John Carpenter mais mal diz. Mesmo para os seus grandes falhanços (grandes falhanços na bilheteira, entenda-se) do princípio dos anos 80, que o tempo tornou em “beautiful losers”, Carpenter só tem, regra geral, palavras de estima. Com este, que marcou um regresso aos grandes estúdios (a Warner Brothers) e pôs fim ao período de inactividade excepcionalmente longo (quatro anos) que se seguiu a They Live (batido depois pelo período entre Ghosts of Mars, de 2001, e The Ward, de 2010, descontando os dois episódios para a série de televisão Masters of Horror), com este filme, dizíamos, Carpenter não é nada meigo. Como se confere, por exemplo, na entrevista publicada no catálogo editado pela Cinemateca, onde Carpenter verbera as interferências constantes da sua estrela, Chevy Chase (não creditado como produtor mas, a julgar pelas palavras de Carpenter, com uma palavra determinante sobre os destinos do filme), e lamenta especialmente a imposição de uma narração em “off” com que nunca concordou (“detesto a voz ‘off’”).

É verdade, e arrumemos já com este assunto, que a voz “off” é banal, resquício de um tipo de cinema, e em particular de um tipo de comédia americana muito “anos 80”, muito “Saturday Night Live” e similares (que é o meio de onde emergiu Chevy Chase), muito verborreica, que tem pouco ou nada a ver com o cinema de John Carpenter. E que não acrescenta, de facto, nada de muito significativo ao filme, nem sequer à composição da personagem interpretada por Chase (que se chama Nick Halloway, num mais que certo trocadilho com a quase homófona palavra “hollow”, em português, “vazio”, “por preencher”). Mas é igualmente verdade que o filme não é danificado pela presença da voz “off” (esquecemo-nos dela rapidamente, e terminado o filme lembramo-nos de tudo menos da voz “off”), e que ela, até nas suas irrupções extemporâneas, dá uma outra dimensão ao conflito central do filme: a luta de um homem contra o seu apagamento. Podemos facilmente integrar a presença da sua voz no mesmo processo de “resistência”; assim como, a partir das palavras de Carpenter sobre a sua relação com Chase, se abre uma dimensão interessante, como que “comentadora” do próprio processo de feitura do filme. Chase queria sobressair, fazer filmes “mais sérios” (Carpenter dixit) do que as suas comédias habituais, e escolheu um filme sobre um homem invisível? Ironia, mas Chase não a quis levar até ao limite – e na intermitência (que às vezes parece um pouco aleatória) da sua visibilidade para o espectador (sendo certo que para as outras personagens ele é sempre invisível), no seu próprio desejo de não ser apagado, joga-se porventura um conflito entre a vedeta e o realizador. E assim é bem possível que Memoirs of an Invisible Man se converta inesperadamente naquele tipo de filmes que, como Jacques Rivette gosta de dizer, são em simultâneo “a reportagem da sua rodagem”.

Se este conflito parecerá anedótico, não deixa de ser um curiosíssimo eco do conflito narrativo do filme. Muita gente viu Memoirs of an Invisible Man como um filme, em última análise, sobre os efeitos especiais, sobre a imposição do “digital” e a sua lógica de apagamento do actor e do elemento humano. Certamente que sim, e nesse sentido ainda um prolongamento de They Live: é entre as grandes corporações e os grande poderes estatais, a CIA mais propriamente, que se jogam os infortúnios de Nick Halloway, ele próprio saído de um universo (um pouco “yuppie”, de um elitismo vulgar, passe o pleonasmo) que Carpenter nunca tratou muito bem (vide o tratamento inicial da personagem, e depois o dos seus supostos “amigos”, que com a excepção de Daryl Hannah são uns perfeitos imbecis). Mas a esse respeito seria interessante assinalar que Carpenter, mesmo para comentar o “digital”, se serve dele “a contrario”: pensando que o digital, por norma, serve para acrescentar alguma coisa à imagem, depositar-lhe alguma coisa que não estava lá ou transformar os corpos dos actores, o que vemos em Memoirs of an Invisible Man é o digital usado como subtracção, como algo que devia lá estar (na imagem) mas não está. É o próprio digital que se torna “invisível”.

E por isso, se se tornam notados (cf.  ainda a entrevista do Catálogo) os dispositivos ópticos que forçam a revelação do corpo de Halloway (em espécie de metáfora do cinema, que como diz Carpenter “deve fazer aparecer o invisível”), mais notada ainda devia ser a belíssima sequência em que Daryl Hannah, usando rudimentares processos (os batons, cremes e pós de beleza), consegue criar algum tipo de permanência ao rosto de Halloway. Se o digital tornou tudo invisível, e se fez ele próprio invisível, é a maquilhagem (o mais velho truque, a mais velha ilusão do mundo: o teatro) que salva o rosto da personagem – e se o rosto é a porta da entrada para a alma esse salvamento é tudo o que Chevy Chase precisa para que Hannah, apaixonando-se, lhe salve também a alma. Talvez seja o que de mais profundo e mais belo Memoirs of an Invisible Man contém em termos de discurso sobre o “digital” e sobre o cinema.


John Carpenter, “cineasta analógico num mundo digital”: este é o filme que mais validade dá a esta célebre expressão.

LMO

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Renaldo & Clara



"O Bob Dylan é o tipo com um chapéu", diz Bob Dylan, de cabeça descoberta, a uma senhora que lhe pergunta "onde está Bob Dylan". É uma cena de Renaldo & Clara, realizado pelo próprio Dylan, ficção construída por entre os buracos de um documento (documento construído por entre os buracos de uma ficção), encontro entre o filme-concerto e uma espécie de teatro absurdista. 

Quando estreou, em 1978, pouca gente percebeu o que raio se passava em Renaldo & Clara, e o filme ficou com a péssima fama de ser um exercício auto-indulgente, uma manifestação do narcisismo de Dylan envolto em nonsense e incoerência. Poucas vezes voltou a ser visto ou discutido. Mas tem os seus fãs. O crítico de cinema francês Louis Skorecki, um dos maiores dylanianos em circulação, escrevia há algum tempo no seu blogue (quase integralmente dedicado a Bob Dylan) que Renaldo & Clara vale "todo o Visconti, todo o Pialat, todo o Huston, todo o Cassavetes, todo o Peckinpah, todo o De Palma, todo o John Woo"... Se exagera, ou se isto diz mais sobre os desamores de Skorecki do que sobre o seu amor por Renaldo & Clara (e é verdade que diz), só ele pode esclarecer. 

Sejamos menos bombásticos e mais modestos no tiro ao alvo: Renaldo & Clara vale, seguramente, todo o I"m Not There com que há dois anos Todd Haynes ensaiou uma aproximação ao labirinto dylaniano. Renaldo & Clara é Dylan a dizer, com todos os dentes e um grande sorriso, que "não está aqui". Procurem o tipo com o chapéu.

Um pouco da genealogia por detrás de Renaldo & Clara. Fora aparições esporádicas aqui e ali, Bob Dylan esteve oito anos sem fazer uma digressão a sério, entre o famoso acidente de motorizada em 1966 e a série de concertos com os The Band (ou com A Banda, se preferirem), em 1974. Enquanto viajava e tocava com os seus amigos da Banda, pensava e preparava já um "come-back" em nome próprio, mas rodeado de convidados e amigos, mulheres e ex-mulheres. Chamou a essa digressão a Rolling Thunder Revue, Dylan & amigos(Joan Baez, Bob Neuwirth, Roger McGuinn, etc.) numa caravana itinerante que percorreu os Estados Unidos e o Canadá entre o final de 1975 e o princípio de 1976. O bootleg oficial desta digressão foi editado há poucos anos, na chamada Bootleg Series.

Quis também fazer um filme, um filme-concerto que não fosse bem, ou não fosse só, um filme-concerto. Escreveu um argumento, com colaboração de Sam Shepard (que também aparece no filme). E durante a digressão foi rodando esse argumento, basicamente uma série de cenas soltas, aparentemente desconexas e ligadas umas às outras mais por motes simbólicos (as rosas, por exemplo) do que por qualquer evidente continuidade narrativa. Pelo meio, planos filmados durante as actuações, que incluem versões (por norma óptimas) de várias de entre as suas mais conhecidas canções. 

O mundo dos espectadores de Renaldo & Clara divide-se em três campos. Os que juram que tudo faz sentido, as articulações entre as cenas e as articulações entre as cenas e as canções (assim convertidas numa espécie de coro), tudo foi escrito e tudo obedece a um plano que não deixou margem para qualquer improvisação. Os que juram que nada faz sentido, que é tudo aleatório e não tem, no fundo, importância alguma, como se fosse uma grande partida que Dylan fez ao exegeta que há dentro de cada fã dylaniano (assim como quem diz "vai e dá-lhes trabalho"). E o terceiro campo, os que se estão nas tintas para o "pequeno teatro" ou para o "pequeno cinema" de Dylan, não perdem um segundo a tentar descodificar os jogos de espelhos entre o filme e a sua vida real (Dylan interpreta Renaldo, e Sara, então a sua mulher, é Clara), se marimbam para os duplos e para as espirais, e aceitam essas cenas como meros intróitos enquanto esperam por um novo momento com uma canção ao vivo.

Digamos assim: o filme dá, de facto, algum trabalho (porventura ingrato), se for visto com a preocupação de identificar e descodificar os simbolismos. Mas dá, sobretudo, prazer, se for visto pelo seu "valor facial", pela ironia que se desprende das conversas e das situações, pela evidência do espectáculo que é Bob Dylan a jogar ao gato e ao rato consigo próprio, com as suas mulheres (Joan Baez foi namorada dele na primeira metade dos anos 60) e, seguramente, com os seus espectadores. E, nessa perspectiva, não é um objecto assim tão estranho, para quem tenha uma ideia do que eram as leituras de Dylan (e também do que sempre foram as suas letras e a sua poesia), dos meios em que ele circulou no tempo em que andava a visitar Edie Sedgwick ou a oferecer canções a Nico: parece evidente que o modelo de cinema de Dylan, até na maneira de explorar a ironia narcisista e o jogo das aparências e das ausências (aquela maquilhagem branca a sublinhar a "performance", a reforçar o "fantasma") vem muito mais das tradições do underground nova-iorquino do que propriamente de Hollywood... E é um belo filme. 

Dylan nunca mais quis ser realizador, mas desta vez foi mesmo um realizador.

LMO

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Filhos do Deserto



A DESAPARECIDA
De John Ford
Os dois mais belos “regressos a casa” filmados na idade clássica do cinema americano são os de Robert Mitchum em “The Lusty Men / Idílio Selvagem”, de Nicholas Ray (1952) e o de John Wayne em “The Searchers / A Desaparecida”, de John Ford (1956). Acontecem os dois no princípio do filme – e no de Ford, que agora nos interessa, esse regresso é mesmo a abertura do filme. Num caso como noutro, a extraordinária paz do “homecoming” é mera ilusão. Ford não o explicitou como Ray, que disse (mais do que uma vez) que “não se pode voltar a casa”. Ethan Edwards, a personagem de John Wayne em “A Desaparecida”, regressa mais do que uma vez,  para voltar sempre a partir – e no fim, nem chega a entrar, a porta, em rima directa e circular com o plano do princípio fecha-se sobre ele, que avança de costas voltadas deserto adentro. Ford não seria tão radical como Ray: há quem possa regressar a casa, e se a elipse final de “A Desaparecida” não nos engana, várias são as personagens que regressam, em toda a plenitude do “regresso” e da “casa”. Mas isso não se aplica a todos e há um homem, que no fim de contas nunca teve ou há muito tempo já não tem uma casa, que é devolvido ao mesmo deserto de onde veio. Esta é uma das muitas histórias contadas por “A Desaparecida”, talvez a mais trágica, talvez a mais doce, possivelmente a mais significativa e a mais americana.
“A Desaparecida” é um dos mais célebres e adorados filmes de John Ford. Favoritos, cada um tem o seu (como esquecer “She Wore a Yellow Ribbon / Os Dominadores”, como?), mas Peter Bogdanovich tem obviamente toda a razão quando diz, na versão comentada do filme incluída neste DVD, que “A Desaparecida” é um dos cinco ou seis títulos maiores da obra de John Ford. Realizado em 1956, é um Ford daquele que se convencionou chamar o “período maduro” do cineasta americano, designação insuficiente (porque pressupõe que por exemplo o Ford dos anos 40 não era “maduro”) que importa precisar um pouco mais. Como toda a gente sabe (e toda a gente conhece o “…and I make westerns”) o “western” foi sempre o território de eleição de John Ford, género eminentemente americano (como todos os outros, aliás) com cuja história se confunde. Espécie de grande narrativa mítica da construção da América, foi um género com uma tendência (natural e facilmente explicável) para um maniqueísmo sem grandes problemas de consciência, mormente no tratamento dos índios – silhuetas na paisagem, não forçosamente entidades malévolas mas obstáculos a ultrapassar, como um rio ou um rochedo, e portanto desprovidos de verdadeira “humanidade”. Sobretudo a partir do pós-guerra, e mais propriamente a partir dos anos 50, o emergir de uma nova “sensibilidade” começou a desenhar novos contornos para o “western”, numa atitude desmistificadora – é sobretudo o caso dos anos 60, apogeu do “western revisionista”, que na maior parte dos casos era já, literalmente, “pós-western”.
Sem que na altura houvesse muita gente para dar por isso (e Scorsese, salvo erro, menciona esse aspecto num dos “extras”do DVD) Ford não só acompanhou como antecipou esse movimento. À entrada dos últimos dez anos da sua obra (“A Desaparecida” é de 1956, o último, “Seven Women / Sete Mulheres”, é de 1965) Ford estava já a preparar o fim do género que décadas antes ajudara a criar e a estabelecer – é o tempo dos seus filmes “crepusculares”, e é sobretudo no sentido desta palavra, “crepuscular”, que se devem entender as alusões ao período de “maturidade” de Ford. A sua derradeira homenagem aos índios, “Cheyenne Autumn”, viria em 1964. Mas “A Desaparecida”, sem se resumir a isso (bem longe de tal), pode ser enquadrado nessa reflexão sobre a presença e o lugar dos índios e das culturas nativas americanas. De forma, aliás, razoavelmente complexa, uma vez que se trata de um filme que aparentemente reproduz os lugares-comuns sobre os índios – ferozes, selvagens, violadores e raptores de crianças brancas.
Tudo repousa mais uma vez na personagem de Ethan Edwards, porventura a mais turva personagem de Ford (e de Wayne), personagem cheia de “sentido” (e de “sentidos”), contraditória e, no fim do filme, como que “expelida”. Mil vezes Ford se projectou em Wayne, mil vezes Wayne foi o representante de Ford (e, pormenor, uma das coisas que alguém menciona nos extras é o modo como Wayne se “apropriava” de gestos e maneirismos típicos de Ford). Aqui, se existem projecção e representação, elas são bastante mais ambíguas.
“Gostava que o tio Ethan estivesse” aqui, diz o sobrinho na sequência em que a pequena casa-oásis no meio do deserto é cercada pelos Comanches. Podia-se descrever o movimento de “A Desaparecida” como algo entre a necessidade desta presença e a altura em que, no plano final, ele se remete ao deserto e a porta se fecha – quando a sua presença deixa de ser necessária e ele já não tem lugar. Narrativamente, é capaz de ser a história mais importante de “A Desaparecida”. Ethan estava fora nessa noite que lança o drama, quando a casa do irmão e da cunhada é atacada por índios. Acontece um massacre, e o segundo regresso de Ethan, para descobrir o que restou e o que aconteceu aos familiares, contém algumas das mais ásperas elipses da obra de Ford (o plano em que Wayne assoma à entrada do celeiro, por exemplo, em dilacerante rima com o plano inicial). Mas as duas sobrinhas de Ethan, uma adolescente e uma criança, ao que tudo indica foram raptadas, e estão portanto vivas, algures num acampamento índio. Noutra fabulosa elipse, percebemos mais tarde o que aconteceu à mais velha (“queres que te faça um desenho? Por mais tempo que vivas não me faças perguntas”). Monta-se uma expedição de salvamento e pouco tempo (e mais elipses) depois, restam dois: Ethan e o sobrinho adoptivo, Martin (Jeffrey Hunter) um mestiço meio-cherokee que o irmão tinha adoptado.
Em mais do que um sentido, a história de “A Desaparecida” é tanto a da busca da rapariga raptada como a da relação entre Ethan e Martin – e sobretudo, da maneira como o olhar de Ford vai tratando um e outro. Ethan Edwards é o homem amargo, solitário, complexado, carregado de ódio contra os índios. Em suma, se é que se pode somar tão simplesmente, um racista (o que é exemplarmente expresso numa das mais terríveis cenas do filme, o encontro com um grupo de mulheres brancas resgatadas pela cavalaria a uma tribo índia: “estas mulheres já não são brancas”). Um anti-herói, como os que por esta altura já havia no cinema americano mas que não é costume associar a Ford (ou a John Wayne). E Martin é rapaz meio-índio, que vai crescendo e tornando-se adulto ao longo dos anos que a busca demora. Se há um “discurso” de Ford, como parece inegável que há, ele tem que ser procurado na evolução destas duas personagens aos olhos da câmara. Reparar como a pouco e pouco a personagem de Hunter vai aumentando de importância, e como é o seu ponto de vista que se vai impondo (fundamental, a magnífica sequência, em falso “flash back”, da leitura da carta pela sua namorada), assim como a sua vontade e as suas ideias, num movimento paralelo ao apagamento de Ethan Edwards. No fim, como que por uma ironia carregada de sentido, quem regressa a casa são uma miúda “aculturada” pelos comanches, e um semi-cherokee que vai casar com uma filha de emigrantes dinamarqueses. Ethan Edwards fica com o deserto.
Também por isso “A Desaparecida” se desenha como uma grande saga americana, tingida em tons de tragédia clássica. Não sabemos dizer o que é aqui mais admirável. Se o tratamento coral da paisagem (Monument Valley ou as planícies nevadas), se a absoluta depuração narrativa (as elipses, os cinco anos que se podem passar de um plano a outro), se a progressão obstinada e demencial da personagem de Wayne (momento de suprema loucura: Ethan a descarregar a espingarda contra uma manada de búfalos, “para os índios não terem o que comer”), se a capacidade expressiva que Ford revela em cada enquadramento – como diz alguém nos extras, “se querem pintura, vejam John Ford”. “A Desaparecida” é um dos monumentos do cinema clássico americano. É para ser visto, qualquer explicação fica aquém.

LMO

quinta-feira, 17 de abril de 2014

The Outlaw Josey Wales


THE OUTLAW JOSEY WALES
de Clint Eastwood
The Outlaw Josey Wales é, dos seus filmes, o preferido de Clint Eastwood (ou pelo menos era, aqui há uns anos). É fácil acreditar nessa preferência, porque The Outlaw Josey Wales sintetiza admiravelmente, e com menos ambiguidade do que noutras circunstâncias, um punhado de características essenciais na “persona” de Clint. De resto, acompanhar todo este período do anos 70 em que a sua obra alternava “westerns” e “policiais” (especialmente os com Dirty Harry) permite uma conclusão óbvia: os “westerns” iluminam os “policiais”, Dirty Harry é um “cowboy” num cenário moderno e urbano mas fundamentalmente indistinto dum cenário de “western” – porque a lei e a justiça, por alguma razão ou por um conjunto de razões, se tornaram inoperantes (e a inoperância da lei, a sua impotência e a sua incapacidade, são o tema subjacente a todos os filmes com Dirty Harry). Curiosamente, talvez nunca se tenham tirado, mesmo por quem defendeu Clint desde cedo e durante o tempo da artilharia pesada virada contra ele, as devidas ilações quanto ao teor do seu retrato de uma América ainda e sempre embrenhada numa “cultura de violência” que sufoca a eficácia da lei e da justiça.
Que melhor época para sintetizar esta impotência legal, levada ao ponto do caos, do que o aftermath da Guerra Civil retratado em The Outlaw Josey Wales? Bandoleiros que se tornam soldados a partir do momento em que vestem um uniforme, e vice-versa. A lei não tem “rostos”, tem “máscaras”. É nesta confusão que se desenvolve The Outlaw Josey Wales, de resto com profundas e realistas bases históricas (na descrição, por sua vez demasiado confusa para aqui a tentarmos resumir, das inúmeras milícias e grupos paramilitares que medraram em torno dos exércitos da União e dos Estados Confederados). Atendendo à fama que tinha, há que gabar a coragem (a provocação? o autismo?) de Clint em assumir uma personagem de sulista, mas ao mesmo tempo há que entender que o sulismo de Josey Wales é um sulismo mítico ou mitificado, que serve como ponto de partida, o ponto de partida de um derrotado mas sobretudo o ponto de partida de uma personagem que viu o seu mundo esboroar-se, uma personagem que ficou “sem mundo”.
Ou que ficou reduzido a um pequeno núcleo essencial – a pequena propriedade, a casa, a família. The Outlaw Josey Wales começa como, muitos anos mais tarde (ou não tantos assim, apenas dezasseis), Unforgiven, com um agricultor a tratar da sua propriedade. Nas drásticas circunstâncias que os espectadores verão na primeira sequência, até isso vai ser retirado a Josey Wales. E são essas circunstâncias que o forçam a agir (como sempre: Clint não é um devoto da acção, nem Dirty Harry, apenas alguém que a aceita como uma inevitabilidade, a inevitabilidade que permitirá o regresso à inacção), num mescla de sentimentos que concilia o desejo de vingança com um “je m’en foutisme” (visto que ficou sem nada) quase suicidário, e põe em marcha o processo que fará dele o “fora da lei Josey Wales” (também aqui, no que tem a ver com o relato, com a aura e com a fama, sempre ditadas por terceiros, se encontraria uma relação com Unforgiven). Mas, evidentemente, sempre munido de uma espécie de código de honra, silencioso e nunca expresso, um sentido de decência fundamental que ao longo do filme terá mais do que uma ocasião para manifestar – numa terra sem lei ou onde a lei foi distorcida, a única bússola é a fornecida por uma lei pessoal, por um punhado de valores instintivos (ver, por exemplo, os contracampos da reacção de Clint à iminente violação da personagem de Sondra Locke, em prova de que, mais uma vez, seriam esses valores a forçá-lo a agir, caso disso tivesse chegado a haver necessidade). “Fora da lei”, no fundo, estão todos; mas o único que tem pelo menos uma vaga memória da dimensão moral da lei é Josey Wales, e nisto se funda quase todo o individualismo eastwoodiano.

Houve algum reboliço quando, pouco depois da estreia do filme, se descobriu que o Forrest Carter que assinava a novela em que o argumento se baseou era apenas o pseudónimo de um proeminente membro do Klu Klux Klan. Clint garantiu não saber de nada disso durante a rodagem. Mas tinha mais graça se tivesse sabido, porque The Outlaw Josey Wales é um filme profundamente anti-racista. Num terra onde os brancos do sul e os brancos do norte se andaram a matar e ainda se matam indiscriminadamente, junto de quem é que Josey Wales encontra um “espelho”, um espelho para o seu código de honra, um espelho para o seu “mundo perdido”? Justamente, dos índios. O território índio podia ser uma “reserva” no sentido segregacionista que veio a ter, mas era sobretudo uma “reserva” moral, propriamente dita. The Outlaw Josey Wales tem um pouco de uma declaração de amor pela paisagem americana (como os bons westerns clássicos), na permanente deriva territorial que ocupa grande parte do filme, mas também é uma declaração de amor pela diversidade dessa paisagem e pela memória ancestral que ela conserva. E, tanto mais que Clint já estava aqui (ver, por exemplo, os tempos e a planificação, tudo muito pragmático, do derradeiro combate, mas sobretudo do duelo de olhares, campos/contracampos, em que se decide o confronto final com a sua “nemesis”) completamente livre dos maneirismos “leonianos” ainda tão presentes no seu primeiro western (High Plains Drifter) é de Ford que mais nos lembramos ao longo de The Outlaw Josey Wales, como se o diálogo fosse, agora, com The Searchers ou com Cheyenne Autumn. “Revisionista”, como lhe chamam, eventualmente; mas no mesmo sentido em que os derradeiros Fords foram, eles próprios, revisionistas. Ou seja, usar a mesma tradição para dizer outras coisas: dizer “o último dos clássicos” nem sempre faz sentido, aqui sim.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Entrevista com Manuel Mozos

NUNCA SE GANHA E NUNCA SE PERDE

“Quatro Copas” é a quarta longa-metragem de ficção de Manuel Mozos (n. 1959), história de um trio de personagens que depois passa a quarteto unido e desunido pelas circunstâncias afectivas, numa Lisboa sempre reconhecível mesmo quando não é identificável. É um momento feliz na obra de Mozos, desde sempre assolada por percalços variados: “Quatro Copas” estreia-se comercialmente, “Ruínas” (ainda não estreado) tem ganho alguns prémios importantes. Em conversa com o Ípsilon, Manuel Mozos falou de “Quatro Copas” e dos caminhos difíceis percorridos pelos jovens cineastas portugueses que se estrearam nos anos 80. Mozos foi um deles, e aprendeu que “nunca se ganha e nunca se perde”.

PÚBLICO – A sua carreira vive em 2009 um momento particularmente feliz. “Ruínas” tem dado nas vistas [foi premiado no IndieLisboa e no FID-Marselha], “Quatro Copas” estreia-se comercialmente… E apresentou ainda “Aldina Duarte – Princesa Prometida”. Numa obra que tem sofrido com tantas irregularidades, tem alguma explicação para esta conjuntura afortunada?
MANUEL MOZOS – É uma coincidência, que até é devida a essas irregularidades. A rodagem do “Quatro Copas” foi em 2005, está pronto praticamente desde há dois anos, e há um ano e meio que estava à espera da estreia. O “Ruínas” também foi um processo prolongado, ficou pronto agora. Assim como o da Aldina. É uma coincidência, mas acho que há uma coerência [risos] na relação com as irregularidades. O caso extremo é o “Xavier”, que ficou muitos anos à espera de ser estreado, mas há uma aura de invisibilidade em torno de tantas coisas que fiz…
P- “Quatro Copas” é a sua quarta ficção. Como é que a relaciona com as outras três [“Um Passo, Outro Passo, e Depois”, 1989, “Xavier”, 1992 e “…Quando Troveja”, 1999]?
R- Por um lado, ambientarem-se todos em Lisboa, e por outro, uma proximidade nos traços das personagens. Personagens em queda, que acabam por ter uma espécie de redenção, e se movem no quotidiano. No “Quatro Copas” isso sente-se de maneira diferente, porque seguimos quatro personagens e não uma, mas isso para mim até é um pouco uma súmula, permite-me apanhar quatro personagens de gerações diferentes.
P- A Lisboa de “Quatro Copas” é um pouco mais tortuosa. Gira entre o corriqueiro do centro comercial e a clandestinidade da casa de jogo. É uma Lisboa dada mais por ambientes do que pela rua.
R- Concordo. Não é o aspecto realista da cidade que me interessa. Antes usar a geografia como “décor”, procurar o que nela há de “papelão”, usá-la como uma paleta. Neste filme há mais interiores, de facto. A ideia de ter personagens a moverem-se numa aparência de subterrâneo já me tinha interessado no “…Quando Troveja”, mesmo se aí acabei por não a explorar como queria. Em todo o caso não é o realismo estrito que me motiva. O casino clandestino, por exemplo, tem um lado postiço, é sobretudo uma ideia, um ambiente…
P- Se há uma coisa que define os seus filmes é a maneira de trabalhar as personagens e de se relacionar com elas. É única e inconfundível no cinema português. Em termos de construção, diria que é narrativa que as decide, ou que são elas que decidem a narrativa? É que fica a sensação de que a partir de certa altura o seu amor pelas personagens, por todas elas, se sobrepõe a tudo.
R- Este filme tem uma nuance. Ao contrário das minhas outras ficções, que partiam de ideias minhas ainda que depois as desenvolvesse com outras pessoas, o argumento do “Quatro Copas” nasceu de um trabalho conjunto com a Cláudia Sampaio e o Octávio Rosado. Julgo que para eles o mais interessante até era o trabalho sobre a história. Mas eu envolvi-me especialmente no desenvolvimento das personagens, até de maneira que nalgumas partes se poderia dizer que a história ficou fragilizada. Na montagem ainda reforcei mais isso. Tentei tirar partido do que havia de mais forte no trabalho dos actores. Digo “fragilizada” no sentido em que a certa altura me preocupei menos com a “coerência” da história do que com o que fazia com que se pudesse acreditar nas personagens.
P- Tendo formação e experiência de montador, com inúmeros trabalhos para outros realizadores, consegue criar uma distância face ao material filmado por si?
R- É complicado. Nos meus filmes trabalho sempre com outros montadores. E gosto de lhes deixar algum espaço para eles fazerem a sua leitura. A sua leitura e a sua escrita. Mas por força das circunstâncias acabei, neste filme assim como no “Xavier”, por estar muito directamente ligado à montagem. Houve uma primeira versão, montada pelo Pedro Marques, com a qual estávamos bastante satisfeitos, mas era uma versão decidida na relação com uma série de trechos musicais de que não pudemos comprar os direitos, que eram uma exorbitância. Como ele depois não estava disponível, fiquei eu, um bocado a contragosto, a trabalhar na remontagem.
P- Percalços e interrupções… A sua carreira parece atrai-los: o “Xavier” foi o que foi, o “Passo” é um dos poucos “missing films” dos anos 90…
R- Há mais, há mais…[risos]
P- A pergunta é: num meio já de si tão complicado e frequentemente adverso como é o do cinema português, como é que se lida com toda esta adversidade adicional?
R- Já me angustiei mais com isso. Hoje acho que não vale a pena perder muito tempo a pensar nessas contrariedades. Prefiro estar contente com a vida do que viver amargurado por causa de alguns azares. Também já não tenho as pretensões e as ambições que tinha há vinte ou mesmo há dez anos. Há uma certa resignação, se calhar um pouco estúpida. O caso do “Passo” ainda me faz sofrer um bocadinho, embora tenha esperança que algum dia venha a ser encontrado [o filme só é visível actualmente em transcrições vídeo]. Mas em Portugal há tanta coisa que se perde, que fica para trás… Também não me angustio com o futuro. Se fizer outro filme, farei. Já não tenho muita paciência para as minhas próprias angústias. Fiz um número razoável de filmes, mesmo que não sejam vistos. Mas eu sei que os fiz. Para mim isto já é uma satisfação. É claro que me posso perguntar se as coisas como me estão a correr hoje…
P- …tivessem corrido assim desde o princípio…
R- …mas nem vale a pena. Tenho-me divertido…
P- Deve ser das pessoas com um interesse mais intenso, e quase enciclopédico, no cinema português e nos seus recantos mais obscuros. É capaz de falar com profunda estima de um filme falhadíssimo dos anos 50, ou de uma produção amadora feita sabe-se lá onde… Para dizer que são maus, mas sem que isso impeça uma espécie de apreço. De onde é que isto vem? O que é que o interessa tanto nesta história alternativa do cinema português como falhanço?
R- Não é só no cinema…
P- Eu sei, mas circunscrevendo…
R- Por um lado, e genericamente, tenho tendência a comover-me com a “décalage” entre uma intenção e o resultado dela. Por outro, no cinema português há, ou havia, algumas pessoas que mesmo sem talento ou condições se entregavam ao que estavam a fazer com total convicção. O resultado podia ser péssimo mas era a vida daquelas pessoas. Para além disso, e por maus que sejam, pode-se sempre encontrar coisas interessantes nesses filmes. Pormenores de arquitectura, a maneira como as pessoas se vestiam. O esforço inglório de alguns actores, a darem o melhor de si e depois o filme não presta para nada… Às vezes há momentos fantásticos. Claro que é um bocadinho enfadonho estar a ver uma hora e meia para aproveitar trinta segundos. Mas pronto.
P- A sua geração, por discutível que seja o conceito de “geração” mas aceitemo-lo para definir o conjunto de pessoas que chegou ao cinema nos anos 80, teve imensas baixas e desaparecidos em combate. Quase se lhe pode chamar, a si, um “sobrevivente”. O que é que esta geração encontrou de tão especialmente difícil? Tem alguma explicação?
R- Havia um problema geral, que sempre houve: falta de espaço. As próprias condições de produção o ditam. Nunca houve um investimento sério para criar, não uma grande indústria que seria impossível, mas algum tipo de abertura. De entre a geração dos anos 80 muitos ficaram pelo caminho, de facto. Começava logo nos concursos do Instituto [Português de Cinema, então], onde só havia lugar para uma ou duas primeiras-obras. Havia aquelas pessoas ainda muita próximas, etariamente, da geração do Cinema Novo, o João Botelho, o Luis Filipe Rocha, o José Alvaro Morais, o Jorge Silva Melo, e a vida também não foi fácil para eles. Mas dos que vieram a seguir, durante os anos 80, muitos ficaram bloqueados, praticamente só o Pedro Costa, o Joaquim Leitão e a Teresa Villaverde é que conseguiram singrar. Pessoas como o Vitor Gonçalves, ou o Daniel Del Negro, fizeram filmes que como era habitual na época tiveram dificuldades em estrear mas foram muito projectados num círculo restrito, e isto também pode ser um bocado intimidatório por causa das expectativas que se criam. E muitos tiveram infortúnios de todo o tipo. Se quisesse ir por uma teoria da conspiração diria que esta conjuntura até podia ter sido gerida por pessoas ligadas às decisões sobre o cinema português, que optaram por estrangular em vez de abrir. E então pronto, tinha que haver vítimas e quem se aguentasse aguentava. Muitos dos filmes, mesmo cheios de fragilidades, não mereciam ter levado a pancada que levaram. Os primeiros filmes do João Canijo, por exemplo, aquilo foi complicado. Depois há o caso do [Edgar] Pêra, que é um caso de resistência. Em resumo, não consigo dizer: foi por isto ou foi por aquilo. Houve um conjunto de factores que atirou muita gente para fora da pista. E quando finalmente podiam estar em condições de recuperar o tempo perdido aparece uma nova geração. Voltar quinze ou vinte anos depois é sempre muito complicado.
P- Pensando nalguns casos dessa nova geração, o Joaquim Sapinho, o João Pedro Rodrigues, mesmo o Miguel Gomes, dá a impressão de que encontraram uma conjuntura menos agreste. Por outro lado, a vossa geração era uma geração de “filhos”, e estes já não são bem “filhos”. Até que ponto isto pode ser importante?
R- Acho que isso é realmente importante. Quer dizer, eu não sei se o Pedro Costa ou a Teresa Villaverde…
P- …se consideram “filhos”…
R-…pois, mas isto é um facto: nós ainda conhecemos os “pais”. Até pelos filmes isso se nota. Havia algumas referências em comum, até numa linha de continuidade com o cinema português. Querendo ou não, ainda estávamos muito ligados ao Paulo Rocha, ao António Reis, ao Fernando Lopes, ao João Bénard da Costa, ao Seixas Santos ou ao César Monteiro. Até mesmo, de maneira diferente, ao João Mário Grilo. Havia uma herança que era veiculada pela Escola de Cinema. Julgo que nestes, no Sapinho, no João Pedro, no Sandro Aguilar, no Miguel Gomes, há um despojamento maior. Outra abertura ao mundo.
P- Ao mesmo tempo, e não querendo transformar isto em psicanálise barata, nos vossos filmes sente-se a noção, ainda que inconsciente, de estarem a filmar dentro da “família”, sob o olhar do “pai”.
R- Nós apanhámos a geração do Cinema Novo ainda ligada a todos os lugares importantes, no IPC, na RTP… Eu por exemplo devo o meu primeiro filme ao Fernando Lopes, foi ele quem me convidou para os “Corações Periféricos” [a série onde se integrava “Um Passo, Outro Passo e Depois”]. E acho que este tipo de relacionamento criou uma espécie de constrangimento nos mais novos, que aliás era incentivado pelos mais velhos. Estou a dizer isto mas não implica que não tenha admiração, respeito e amizade, por muitos desses cineastas. Mas é um sentimento de dívida que os tipos de agora, que já não os apanharam nos lugares decisivos, não têm. Não lhes devem nada.
P- Quando “Xavier” teve uma sessão de ante-estreia na Cinemateca incluiu na folha de sala um poema de Jaime Gil de Biedma [“Príncipe da Aquitania, En su Torre Abolida”] que começa assim: “Una clara consciência de lo que ha perdido / es lo que le consuela”.  É tão fácil adivinhar que se identifica com este verso…
R- Ah, sim, sim. Isto pode fazer confusão a algumas pessoas, mas serve-me para avançar. OK, perdi certas coisas mas… é como na canção do [John] Cale, “never win and never lose” [“nunca se ganha e nunca se perde”]…
P- …ou na do Dylan, “there’s no success like failure but failure’s no success at all” [“não há triunfo como o falhanço, mas o falhanço não é triunfo nenhum”]…
R- As coisas equilibram-se. Mesmo quando perdemos muito ganhamos alguma coisa. E isto é importante.

LMO