terça-feira, 11 de novembro de 2008

ALCÁCER AQUI



O QUINTO IMPÉRIO – ONTEM COMO HOJE
De Manoel de Oliveira


Com O Quinto Império – Ontem Como Hoje Manoel de Oliveira regressa a tempo inteiro – no tempo de um filme inteiro – à história de Portugal, matéria que já por mais do que uma vez serviu de sangue dos seus filmes. Regressa também a José Régio, depois de Benilde ou a Virgem Mãe, nos anos 70, e O Meu Caso nos anos 80, adaptando agora a sua peça teatral El Rei D. Sebastião, de que mantém a íntegra do texto.

É um regresso em grande a um cinema “oliveirianamente” puro e duro, próximo daquilo a que se costuma chamar “teatro filmado”, feito duma coreografia do plano (maioritariamente) fixo e da encenação “materialista” da palavra. O requinte é absoluto e majestoso – e mais uma vez se pede que não se confunda isto com qualquer “austeridade”: os valores plásticos (a começar no magnífico trabalho da directora de fotografia Sabine Lancelin) são de uma sensualidade extrema, e a relação das figuras (apetece chamar-lhes assim, mais do que “personagens”) com os décores é o eixo que os norteia. No centro, D. Sebastião, figura centrípeta do filme e do espaço do filme: O Quinto Império – Ontem como Hoje pode ser uma reflexão sobre a história de Portugal e sobre uma das suas mais fundas mitologias, mas é também um ensaio abstracto sobre o poder e o lugar do poder (e sobre os que, ocupando esse lugar, encarnam o poder). Ou talvez não tão abstracto quanto isso.

Talvez importe sublinhar que não se trata de uma reconstituição. Não há “suspension of disbelief”, o filme nunca pretende que nos transportemos para o século XVI (tal como o texto de Régio o não pretende). O olhar é contemporâneo, “ontem como hoje” – e a palavra “hoje” é obviamente a mais importante. Num certo sentido a mais enigmática também, leia-se o título “Ontem como Hoje” como um comentário (como os títulos dalguns quadros) que abre possibilidades de sentidos mas obscurece em vez de iluminar. É, aliás, pela obscuridade que o filme começa: as primeiras cenas são todas na penumbra, entre sombras que apagam os corpos e salientam as vozes (e de onde emerge a do rei, ainda apenas voz incorpórea mas voz de poder e de autoridade). Mas ainda antes delas o genérico mostrara um movimento de câmara nocturno pela Janela do Capítulo acima, fazendo todo aquele arsenal simbólico desembocar (ou melhor, embocar) num buraco negro. E depois, um dos mais surpreendentes planos de todo o filme (e um plano de génio): um pequeno traço luminoso cruza o céu sobre Tomar (tudo se passa no Convento de Cristo). Um avião, só pode ser, fabulosa “denúncia” da representação, “sinalização” da contemporaneidade (ou do “hic et nunc”, diria o outro). Mais tarde no filme voltaremos mentalmente a esse plano, e o avião transformar-se-á no cometa dos sonhos messiânicos de D. Sebastião – ou seja, artifício, “efeito especial”, ou seja, cinema, teatro, representação, como queiram chamar: O Quinto Império devolve o sebastianismo ao mundo dos mitos e da ilusão, fabrico de uma mente delirante que contrapõe os seus sonhos e o seu olhar cegado (que vê ele para além da janela do seu domínio? Nada: o único contracampo do seu olhar dá-nos um falso, e magnífico, céu estrelado) aos apelos racionais dos seus conselheiros. Mas como o sonho o comanda, a profecia servir-se-á dele – pelo menos o que parece decorrer da longa e alucinante conversa com Simão, o “Sapateiro Santo” (Luís Miguel Cintra): D. Sebastião redimir-se-á em Alcácer Kibir, sacrifício para que a história se cumpra e o mito se gere: a lenda fará forte o fraco rei. Num daqueles raccords “secos” em que Oliveira é mestre, a noite passa e D. Sebastião desperta perto do trono: mas estaremos seguros de onde está a verdadeira vigília, e o verdadeiro sono?

Esta alusão a um Portugal quimérico, inconformado mas irracional, em rota para o buraco negro do princípio, está seguramente no filme. Mas O Quinto Império – Ontem como Hoje é vasto, não se esgota facilmente. É também um retrato do poder e da megalomania, do delírio como guia de actuação, da irracionalidade que não se reconhece. Manoel de Oliveira é suficientemente perverso para encerrar D. Sebastião dentro do “interior-cripta” em que todo o filme decorre. Não há mais espaço para além daquele, mesmo Portugal, o “país”, não se vê, existe como abstracção, como ideia. Não existe povo, não existe nada: existe o rei semi-louco, existem os seus conselheiros (de quem ele depende, para o bem e para o mal), existem os nobres que o lembram do seu poder (o poder só existe se tiver reflexo noutros), existe a avó (D. Catarina, interpretada por Glória de Matos), e existem os bobos – que são aqueles que têm directo a mais planos “a solo” a seguir a D. Sebastião, e os que têm direito a mais planos “de resposta” nos diálogos com o monarca. Depois existem túmulos e fantasmas – os túmulos que se visitam no princípio, os fantasmas que se soltam no sonho que antecede o fim. Ontem como hoje?

LMO

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Carne fantasma


Histoire de Marie et Julien

de Jacques Rivette


De História de Marie e Julien se tem dito que é um “filme-fantasma”. E com razões para serem levadas à letra: a génese do filme é antiga, vem de meados dos anos 70 e de uma ideia de “série” (a que Rivette chamava as “cenas da vida paralela”) que deveria ter quatro filmes e teve apenas dois (Duelle e Noroît). Nessa altura, em 1975 mais precisamente, Rivette chegou a iniciar a rodagem de História de Marie e Julien (ou pelo menos, a rodagem do argumento que então existia), com um estranho “cast” composto por Albert Finney e Leslie Caron, mas abandonou-a dois dias depois de começar, entre angústias criativas e uma crise pessoal. Por isso se tem dito, com estas boas razões, que estamos perante um “filme-fantasma”: porque é um filme que “volta”, quase 30 anos depois de uma aparente morte prematura, e porque, como algo iniciado e nunca terminado, “unfinished business” (como o de tantos fantasmas de cinema), nunca deixou de pairar no espírito do próprio Rivette (íamos escrever “como uma assombração”, mas é demasiado óbvio). Ei-lo então, o “filme-fantasma”, retrabalhado a partir do “cadáver” deixado em 1975 (leia-se: o argumento e as indicações concebidas na altura) por Pascal Bonitzer e Christine Laurent, fiéis colaboradores de Rivette desde há cerca de 20 anos.
Foi no número dos “Cahiers du Cinéma” onde se destacou História de Marie e Julien que se lembrou uma velha frase de Rivette – “um filme é, antes do mais, a reportagem da sua rodagem” – para justificar o arranque do filme. Muito justamente: é por um sonho que o filme começa, e esse sonho reproduz (vejamos as coisas assim) como um preâmbulo aquela que será, logo a seguir, a “primeira cena” do filme, o reencontro entre Marie (Emmanuelle Béart) e Julien (Jerzy Radziwilowicz). Julien sonha com o reencontro, Julien reencontra; mutatis mutandis, é também Jacques que sonha e Jacques que reencontra. A assombração tem duplo sentido, este filme recebido “em legado” do mundo dos mortos faz escala no mundo dos sonhos antes do regresso à terra. Muito convenientemente para um “filme-fantasma”, é também um “filme de fantasmas”, não por acaso – é a abertura que logo o indica – instalado nessa zona de fronteira que é a agitada terra onírica. Para o filme – o lado “reportagem da sua rodagem” – tratar-se-ia de lhe escapar, de se confirmar enquanto objecto material, palpável; para as suas personagens, para Marie sobretudo, a questão é semelhante. E mais uma vez para levar à letra: ou não pede ela a Julien que “não a deixe adormecer”, essa frase que, mau grado muito boa gente não resistir a evocar Shyamalan a propósito deste filme, poderia vir intacta do Pesadelo em Elm Street do mal amado Wes Craven?
Não que Rivette “cite”, como é óbvio. Nem Shyamalan nem Craven, nem mesmo Hitchcock (Vertigo) ou Dreyer (Ordet), outras lembranças que ocorrem com frequência. Está certo, são histórias de mortos, de mortos-vivos e vivos-mortos, mas são projecções que vêm mais duma cabeça de espectador cheia de filmes do que projecções do próprio filme. Rivette evoca, mais do que cita, e evoca, sobretudo, “matrizes”: em entrevista afirmou, por exemplo, “que se não tivesse medo de soar demasiado pretensioso teria intitulado o filme de ‘Lenda de Marie e Julien’, como ‘Lenda de Tristão e Isolda’”. No filme será o universo de Poe a evocação mais explícita, de histórias como a de Ligeia a maldições como a dos Usher, histórias de mulheres e fantasmas, pesadelos e vigílias, cenários de mausoléu. Sobretudo, histórias de amores post-mortem: o primeiro verdadeiro sobressalto do filme é quando nos é apresentado um gato cor de corvo chamado “Nevermore”. Não é bem citação, é sobretudo sinalização, “pista de leitura”, um holofote lançado sobre o romantismo excessivo e tumular, um gatilho para a “mórbida agudeza dos sentidos”: peguem no brilho negro do pelo do gato, parece dizer Rivette, é esta a luz do meu filme.
Todo o “fantástico” de História de Marie e Julien vem daí, desse confronto entre o palpável e o imaginável, maldito ou bendito. Território bem “rivettiano”, o dum “fantástico” gerado por uma imensidão de falsas pistas (algumas são verdadeiras) tendentes a conduzir a imaginação do espectador por caminhos que só ele, espectador, saberá que seguiu e por que os seguiu. Há “intriga” em História de Marie e Julien, e faltava falar da personagem da “Madame X”, mulher detentora de chaves importantes para o desmanchar da intriga. Mas Rivette, sempre “langiano”, adepto de complots, conspirações e sociedades secretas – e de “segredos terríveis” como em Poe – diverte-se a multiplicar ecos da própria intriga, a sugeri-la muito maior e muito mais complexa, a inventar rituais (Béart a recitar uma lengalenga numa língua incompreensível) que, damos por nós a pensar, quase se aproximam da auto-paródia (ou da auto-citação, em todo o caso, e é o ponto onde nos ficam mais dúvidas). Quando, no fundo, a história não é assim tão complicada: é uma história de amor entre Marie e Julien, enquadrada por um segredo de facto “terrível” (mas para o descobrir é preciso ver o filme).
Mas outra conversa é possível. Esta, por exemplo, que se refere (outro aspecto suficientemente notado) à presença do sexo (do sexo explícito, entenda-se) no cinema de Rivette, porventura pela primeira vez – e “assim”, como aqui, de certeza pela primeira vez. O que é importante aí nem é bem o sexo, mas o que ele implica, sobretudo em termos de figuração (e de representação, num sentido mais amplo) de uma intimidade, e em particular de uma intimidade entre os protagonistas masculinos de Rivette e as mulheres. De mulheres está o cinema de Rivette cheio, tantas vezes como protagonistas e em grupo (La Bande des Quatre, Alto, Baixo, Frágil, dois exemplos relativamente recentes); mas são sempre criaturas fugidias, não necessariamente altivas mas sempre esquivas, “resistentes” tanto aos homens-personagem como ao “homem- câmara” – o cinema de Rivette, numa certa perspectiva, é a “reportagem” de um longuíssimo combate pelo acesso a uma intimidade, que passa pelo corpo certamente, mas onde ele é, como o sonho do início de História de Marie e Julien, uma mera “etapa”. Às incertezas desse combate, que faz de um “plateau” ou, no limite, de um plano, um “ring” imaginário, já Rivette dedicou um filme por inteiro, A Bela Impertinente. Reencontra aqui, e não é, não pode ser, um acaso, a sua protagonista desse filme, Emmanuelle Béart – e se há coisa que as cenas de sexo aqui evocam são as sessões de pintura de A Bela Impertinente, as coreografias e as poses, o “aprisionamento” e a “fuga”, a fixação e a mobilidade. Coisas que têm tudo a ver com o pequeno ensaio sobre a carne de que são feitos os fantasmas que História de Marie e Julien acaba por ser.


LMO