terça-feira, 11 de novembro de 2008

ALCÁCER AQUI



O QUINTO IMPÉRIO – ONTEM COMO HOJE
De Manoel de Oliveira


Com O Quinto Império – Ontem Como Hoje Manoel de Oliveira regressa a tempo inteiro – no tempo de um filme inteiro – à história de Portugal, matéria que já por mais do que uma vez serviu de sangue dos seus filmes. Regressa também a José Régio, depois de Benilde ou a Virgem Mãe, nos anos 70, e O Meu Caso nos anos 80, adaptando agora a sua peça teatral El Rei D. Sebastião, de que mantém a íntegra do texto.

É um regresso em grande a um cinema “oliveirianamente” puro e duro, próximo daquilo a que se costuma chamar “teatro filmado”, feito duma coreografia do plano (maioritariamente) fixo e da encenação “materialista” da palavra. O requinte é absoluto e majestoso – e mais uma vez se pede que não se confunda isto com qualquer “austeridade”: os valores plásticos (a começar no magnífico trabalho da directora de fotografia Sabine Lancelin) são de uma sensualidade extrema, e a relação das figuras (apetece chamar-lhes assim, mais do que “personagens”) com os décores é o eixo que os norteia. No centro, D. Sebastião, figura centrípeta do filme e do espaço do filme: O Quinto Império – Ontem como Hoje pode ser uma reflexão sobre a história de Portugal e sobre uma das suas mais fundas mitologias, mas é também um ensaio abstracto sobre o poder e o lugar do poder (e sobre os que, ocupando esse lugar, encarnam o poder). Ou talvez não tão abstracto quanto isso.

Talvez importe sublinhar que não se trata de uma reconstituição. Não há “suspension of disbelief”, o filme nunca pretende que nos transportemos para o século XVI (tal como o texto de Régio o não pretende). O olhar é contemporâneo, “ontem como hoje” – e a palavra “hoje” é obviamente a mais importante. Num certo sentido a mais enigmática também, leia-se o título “Ontem como Hoje” como um comentário (como os títulos dalguns quadros) que abre possibilidades de sentidos mas obscurece em vez de iluminar. É, aliás, pela obscuridade que o filme começa: as primeiras cenas são todas na penumbra, entre sombras que apagam os corpos e salientam as vozes (e de onde emerge a do rei, ainda apenas voz incorpórea mas voz de poder e de autoridade). Mas ainda antes delas o genérico mostrara um movimento de câmara nocturno pela Janela do Capítulo acima, fazendo todo aquele arsenal simbólico desembocar (ou melhor, embocar) num buraco negro. E depois, um dos mais surpreendentes planos de todo o filme (e um plano de génio): um pequeno traço luminoso cruza o céu sobre Tomar (tudo se passa no Convento de Cristo). Um avião, só pode ser, fabulosa “denúncia” da representação, “sinalização” da contemporaneidade (ou do “hic et nunc”, diria o outro). Mais tarde no filme voltaremos mentalmente a esse plano, e o avião transformar-se-á no cometa dos sonhos messiânicos de D. Sebastião – ou seja, artifício, “efeito especial”, ou seja, cinema, teatro, representação, como queiram chamar: O Quinto Império devolve o sebastianismo ao mundo dos mitos e da ilusão, fabrico de uma mente delirante que contrapõe os seus sonhos e o seu olhar cegado (que vê ele para além da janela do seu domínio? Nada: o único contracampo do seu olhar dá-nos um falso, e magnífico, céu estrelado) aos apelos racionais dos seus conselheiros. Mas como o sonho o comanda, a profecia servir-se-á dele – pelo menos o que parece decorrer da longa e alucinante conversa com Simão, o “Sapateiro Santo” (Luís Miguel Cintra): D. Sebastião redimir-se-á em Alcácer Kibir, sacrifício para que a história se cumpra e o mito se gere: a lenda fará forte o fraco rei. Num daqueles raccords “secos” em que Oliveira é mestre, a noite passa e D. Sebastião desperta perto do trono: mas estaremos seguros de onde está a verdadeira vigília, e o verdadeiro sono?

Esta alusão a um Portugal quimérico, inconformado mas irracional, em rota para o buraco negro do princípio, está seguramente no filme. Mas O Quinto Império – Ontem como Hoje é vasto, não se esgota facilmente. É também um retrato do poder e da megalomania, do delírio como guia de actuação, da irracionalidade que não se reconhece. Manoel de Oliveira é suficientemente perverso para encerrar D. Sebastião dentro do “interior-cripta” em que todo o filme decorre. Não há mais espaço para além daquele, mesmo Portugal, o “país”, não se vê, existe como abstracção, como ideia. Não existe povo, não existe nada: existe o rei semi-louco, existem os seus conselheiros (de quem ele depende, para o bem e para o mal), existem os nobres que o lembram do seu poder (o poder só existe se tiver reflexo noutros), existe a avó (D. Catarina, interpretada por Glória de Matos), e existem os bobos – que são aqueles que têm directo a mais planos “a solo” a seguir a D. Sebastião, e os que têm direito a mais planos “de resposta” nos diálogos com o monarca. Depois existem túmulos e fantasmas – os túmulos que se visitam no princípio, os fantasmas que se soltam no sonho que antecede o fim. Ontem como hoje?

LMO

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Carne fantasma


Histoire de Marie et Julien

de Jacques Rivette


De História de Marie e Julien se tem dito que é um “filme-fantasma”. E com razões para serem levadas à letra: a génese do filme é antiga, vem de meados dos anos 70 e de uma ideia de “série” (a que Rivette chamava as “cenas da vida paralela”) que deveria ter quatro filmes e teve apenas dois (Duelle e Noroît). Nessa altura, em 1975 mais precisamente, Rivette chegou a iniciar a rodagem de História de Marie e Julien (ou pelo menos, a rodagem do argumento que então existia), com um estranho “cast” composto por Albert Finney e Leslie Caron, mas abandonou-a dois dias depois de começar, entre angústias criativas e uma crise pessoal. Por isso se tem dito, com estas boas razões, que estamos perante um “filme-fantasma”: porque é um filme que “volta”, quase 30 anos depois de uma aparente morte prematura, e porque, como algo iniciado e nunca terminado, “unfinished business” (como o de tantos fantasmas de cinema), nunca deixou de pairar no espírito do próprio Rivette (íamos escrever “como uma assombração”, mas é demasiado óbvio). Ei-lo então, o “filme-fantasma”, retrabalhado a partir do “cadáver” deixado em 1975 (leia-se: o argumento e as indicações concebidas na altura) por Pascal Bonitzer e Christine Laurent, fiéis colaboradores de Rivette desde há cerca de 20 anos.
Foi no número dos “Cahiers du Cinéma” onde se destacou História de Marie e Julien que se lembrou uma velha frase de Rivette – “um filme é, antes do mais, a reportagem da sua rodagem” – para justificar o arranque do filme. Muito justamente: é por um sonho que o filme começa, e esse sonho reproduz (vejamos as coisas assim) como um preâmbulo aquela que será, logo a seguir, a “primeira cena” do filme, o reencontro entre Marie (Emmanuelle Béart) e Julien (Jerzy Radziwilowicz). Julien sonha com o reencontro, Julien reencontra; mutatis mutandis, é também Jacques que sonha e Jacques que reencontra. A assombração tem duplo sentido, este filme recebido “em legado” do mundo dos mortos faz escala no mundo dos sonhos antes do regresso à terra. Muito convenientemente para um “filme-fantasma”, é também um “filme de fantasmas”, não por acaso – é a abertura que logo o indica – instalado nessa zona de fronteira que é a agitada terra onírica. Para o filme – o lado “reportagem da sua rodagem” – tratar-se-ia de lhe escapar, de se confirmar enquanto objecto material, palpável; para as suas personagens, para Marie sobretudo, a questão é semelhante. E mais uma vez para levar à letra: ou não pede ela a Julien que “não a deixe adormecer”, essa frase que, mau grado muito boa gente não resistir a evocar Shyamalan a propósito deste filme, poderia vir intacta do Pesadelo em Elm Street do mal amado Wes Craven?
Não que Rivette “cite”, como é óbvio. Nem Shyamalan nem Craven, nem mesmo Hitchcock (Vertigo) ou Dreyer (Ordet), outras lembranças que ocorrem com frequência. Está certo, são histórias de mortos, de mortos-vivos e vivos-mortos, mas são projecções que vêm mais duma cabeça de espectador cheia de filmes do que projecções do próprio filme. Rivette evoca, mais do que cita, e evoca, sobretudo, “matrizes”: em entrevista afirmou, por exemplo, “que se não tivesse medo de soar demasiado pretensioso teria intitulado o filme de ‘Lenda de Marie e Julien’, como ‘Lenda de Tristão e Isolda’”. No filme será o universo de Poe a evocação mais explícita, de histórias como a de Ligeia a maldições como a dos Usher, histórias de mulheres e fantasmas, pesadelos e vigílias, cenários de mausoléu. Sobretudo, histórias de amores post-mortem: o primeiro verdadeiro sobressalto do filme é quando nos é apresentado um gato cor de corvo chamado “Nevermore”. Não é bem citação, é sobretudo sinalização, “pista de leitura”, um holofote lançado sobre o romantismo excessivo e tumular, um gatilho para a “mórbida agudeza dos sentidos”: peguem no brilho negro do pelo do gato, parece dizer Rivette, é esta a luz do meu filme.
Todo o “fantástico” de História de Marie e Julien vem daí, desse confronto entre o palpável e o imaginável, maldito ou bendito. Território bem “rivettiano”, o dum “fantástico” gerado por uma imensidão de falsas pistas (algumas são verdadeiras) tendentes a conduzir a imaginação do espectador por caminhos que só ele, espectador, saberá que seguiu e por que os seguiu. Há “intriga” em História de Marie e Julien, e faltava falar da personagem da “Madame X”, mulher detentora de chaves importantes para o desmanchar da intriga. Mas Rivette, sempre “langiano”, adepto de complots, conspirações e sociedades secretas – e de “segredos terríveis” como em Poe – diverte-se a multiplicar ecos da própria intriga, a sugeri-la muito maior e muito mais complexa, a inventar rituais (Béart a recitar uma lengalenga numa língua incompreensível) que, damos por nós a pensar, quase se aproximam da auto-paródia (ou da auto-citação, em todo o caso, e é o ponto onde nos ficam mais dúvidas). Quando, no fundo, a história não é assim tão complicada: é uma história de amor entre Marie e Julien, enquadrada por um segredo de facto “terrível” (mas para o descobrir é preciso ver o filme).
Mas outra conversa é possível. Esta, por exemplo, que se refere (outro aspecto suficientemente notado) à presença do sexo (do sexo explícito, entenda-se) no cinema de Rivette, porventura pela primeira vez – e “assim”, como aqui, de certeza pela primeira vez. O que é importante aí nem é bem o sexo, mas o que ele implica, sobretudo em termos de figuração (e de representação, num sentido mais amplo) de uma intimidade, e em particular de uma intimidade entre os protagonistas masculinos de Rivette e as mulheres. De mulheres está o cinema de Rivette cheio, tantas vezes como protagonistas e em grupo (La Bande des Quatre, Alto, Baixo, Frágil, dois exemplos relativamente recentes); mas são sempre criaturas fugidias, não necessariamente altivas mas sempre esquivas, “resistentes” tanto aos homens-personagem como ao “homem- câmara” – o cinema de Rivette, numa certa perspectiva, é a “reportagem” de um longuíssimo combate pelo acesso a uma intimidade, que passa pelo corpo certamente, mas onde ele é, como o sonho do início de História de Marie e Julien, uma mera “etapa”. Às incertezas desse combate, que faz de um “plateau” ou, no limite, de um plano, um “ring” imaginário, já Rivette dedicou um filme por inteiro, A Bela Impertinente. Reencontra aqui, e não é, não pode ser, um acaso, a sua protagonista desse filme, Emmanuelle Béart – e se há coisa que as cenas de sexo aqui evocam são as sessões de pintura de A Bela Impertinente, as coreografias e as poses, o “aprisionamento” e a “fuga”, a fixação e a mobilidade. Coisas que têm tudo a ver com o pequeno ensaio sobre a carne de que são feitos os fantasmas que História de Marie e Julien acaba por ser.


LMO

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Como quem conta um conto



BRANCA DE NEVE
de João César Monteiro

Com toda a projecção mediática à volta de “Branca de Neve”, é possível que o espectador, ao entrar para o visionamento do filme, o faça com a sensação de que já “sabe tudo” sobre ele. É um “filme a negro” – esse é o dado que nos têm feito passar como essencial, quando se calhar é legítimo perguntarmo-nos se não se trata afinal de um dado (literalmente) superficial. Porque neste filme, como nos outros com muitas imagens e muitas cores, o que conta é a orgânica; e para nos apercebermos dela, de como se constitui e de como funciona, é evidentemente preciso ver o filme, e constatarmos que, ao contrário do que nos dizem, saber só que é um “filme a negro” é não saber nada, e que “Branca de Neve” é um território polvilhado de surpresas. Aliás, só uma manifesta atracção pelo cheiro a “escândalo” justifica a dita projecção mediática; como lembrava João Mário Grilo nas páginas do PÚBLICO de há uns dias atrás, grande parte da arte do século XX se fez “a partir de gestos da mesma família”, e sem sair do cinema é possível pensar em experiências recentes (o “Blue” de Derek Jarman, por exemplo, que trocava o negro pelo azul) que até já foram exibidas sem qualquer preparação especial por algumas das televisões que agora se interrogam sobre a “legitimidade” de um filme assim.

Voltando à “orgânica” do filme, uma das coisas mais espantosas é o modo como se processa a relação entre o “negro” e a luz. Porque, e será talvez o seu maior “radicalismo”, aqui as coisas funcionam ao contrário – o negro e a escuridão é que são a “natureza” do filme, é que “abraçam” o espectador, e é a luz (planos de céu e de nuvens, mais um plano de ruínas) que se constitui como uma interrupção desse abraço. As “imagens”, aqui, são “flashes” que encandeiam o espectador e que, ironia das ironias, o obrigam a olhar para o lado, tal a violência com que perfuram a ordem perceptiva criada pelo filme. E de resto, esta ideia de um “despertar” associado ao aparecimento das imagens é indissociável do tema da perca (Branca de Neve expulsa do “país dos anões”), absolutamente fulcral no filme e no texto de Walser que lhe serve de estrutura – no fundo, também o espectador está sempre a ser expulso, ou melhor, a ser recordado da sua própria expulsão e da sua própria perca. Até porque “Branca de Neve”, mesmo revista por Walser e por César Monteiro, continua a ser um conto de fadas, a que apenas se acrescentou a consciência magoada da impossibilidade dos contos de fadas. E deste ponto de vista, tudo no filme se parece conjugar enquanto “recriação” de uma espécie de infância dos sentidos – quem diz, perante “Branca de Neve”, que “mais vale ler o livro”, não só se esquece de que este filme, como qualquer outro, é para ser experimentado, como se esquece do tempo em que, em vez de ler o livro, preferia que lhe contassem a história. É para esse tempo que, na sua mais tocante e simples expressão, o filme de César Monteiro nos convoca: está escuro, e alguém nos conta um conto. Já não podemos é adormecer da mesma maneira – e é dessa enorme dor (e só dela?) que “Branca de Neve” nos lembra e nos fala.

LMO

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Entrevista com Otar Iosseliani



Tem uma retrospectiva da sua obra a decorrer em Lisboa numa altura em que acaba de terminar um novo filme, “Jardins en Automne”. Podemos esperar algo na mesma linha dos últimos filmes, como “Segunda de Manhã”?

Não sei… Os meus filmes são como um longo filme, acho difícil, ou mesmo impossível, que se tornem diferentes. Os realizadores têm tendência a fazer filmes muito parecidos. Os de Tati, por exemplo: sempre a mesma figura, o senhor Hulot, e sempre o mesmo núcleo de ideias. Buñuel é a mesma coisa. Mesmo Godard, que pode variar mais ou menos, mas no fundo fala sempre sobre a existência nesta terra, e sobre a razão de viver. Nunca vi um cineasta digno desse nome mudar fosse o que fosse. Vê-se um plano e pode-se adivinhar de quem é.

Mas existem, ainda assim, evoluções ou variações. Por exemplo, entre os seus filmes dos anos 60 e 70, feitos na URSS, e a sua obra posterior aos anos 80, feita em França, podemos ver que há coisas em comum e reconhecer um estilo. Mas fazem dois grupos diferentes de filmes.

Penso que aí as diferenças entre os filmes reflectem sobretudo a diferença da idade. Quando se é jovem descobre-se uns quantos temas que interessa explorar, mas depois continua-se a observar o fenómeno da vida nas suas várias nuances e sob diferentes perspectivas. A experiência da vida pode revelar-nos outros aspectos dos mesmos temas. Mas claro que há sempre diferenças. “Brigands” (1996) por exemplo, que fiz na Géorgia, julgo que é um filme diferente. É um filme sobre um fenómeno que persegue a humanidade desde sempre, e que faz com que as pessoas passem de uma época a outra e continuem a cometer exactamente os mesmos erros. Tentei jogar com isso, pondo uma personagem a atravessar diferentes épocas históricas. Mas repito que a chave, os critérios, e o círculo de ideias se mantêm em redor da análise do que é o destino humano nesta terra, do que é a violência, o bem e o mal. E saber que bagagem levam os seres humanos quando deixam esta vida.

Sei que inicialmente pensou fazer “Os Favoritos da Lua” (1984) na Geórgia, e que só por isso ter sido impossível é que o foi rodar em França, tornando-se o seu primeiro filme francês. Mas se calhar por isso mesmo impressiona a facilidade com que parece um filme sobre a França, ou sobre as sociedades da Europa ocidental, quando à partida não o seria.

Pertencemos todos ao caldeirão da cultura judaico-cristã. Se um chinês viesse à Europa fazer um filme seria diferente, mas isso é muito raro. Todos nos baseamos naquilo que conhecemos. Temos o hábito de medir o essencial da existência segundo a educação que recebemos, e isso é uma questão cultural. Sendo georgiano, pertenço a uma cultura muito antiga, que misturou o cristianismo com outras influências. Cristianismo que aliás é muito mais antigo na Geórgia do que em França. E a Geórgia sempre preservou com muita força a sua cultura, a sua língua, as suas polifonias, ou o seu alfabeto, que é uma das catorze formas de expressão escrita existentes no mundo. Apesar de o povo georgiano ter sido sacudido por guerras intermináveis. Mas o essencial é que sempre houve ali qualquer coisa a defender e a passar às gerações seguintes. Quando cheguei a França descobri que no essencial não havia assim muitas diferenças. Isso reflecte-se no filme, que no entanto, dum ponto de vista cultural, é profundamente georgiano. Não foi por acaso que o quis fazer na Geórgia, mas nessa altura era impossível, existia a censura… Escrevi o argumento sem qualquer esperança de o conseguir rodar lá. Mas quando cheguei a França descobri que lá também não havia grande esperança de conseguir fazer um filme deste tipo. Como sabiam que eu tinha formação musical, propuseram-me antes fazer a “Traviata” (risos). Fiquei muito decepcionado e fui a Itália, mas ainda era pior, por essa altura já não existia cinema em Itália que não fosse virado para o grande público. Em França, felizmente, ainda havia mecanismos de protecção a um cinema de autor. Pus-me à procura de alguém que gostasse de cinema, ainda havia alguns, mas não muitos. Como na Alemanha ou em Itália, restam alguns produtores que estão completamente esmagados. Quando este tipo de produtores desaparecer, deixo de poder fazer filmes.

Ouvindo-o falar, lendo entrevistas suas, vendo os seus filmes, fica-se com a ideia de que algures se decepcionou. Os seus filmes soviéticos são sonhadores e melancólicos, mas os seus filmes franceses parecem um bocado a crónica de uma decepção. Os seus últimos filmes, “Adeus Terra Firme” e “Segunda de Manhã”, estruturam-se numa viagem e num regresso ao ponto de partida que põem em destaque as similitudes, todos os sítios são iguais. É claro que a viagem por si mesma continua a ser um prazer, mas isso não impede uma sensação muito forte de decepção. Isto é verdade?

Sim, acho que sim. A decepção também é uma maneira de reflectir sobre o objecto que se observa. A decepção não é uma novidade, sempre existiu. Por exemplo na época de Cervantes, o “Dom Quixote”… Ou se pegar na maior decepção e no maior pessimismo, que é a história do príncipe da Dinamarca, o sr. Hamlet… “Othello” também é a decepção permanente. As obras de Proust são uma tristeza irredimível. Já para não falar da literatura russa… A decepção é uma chave que abre uma perspectiva sobre as coisas, e se as conseguirmos comunicar, se conseguirmos reflectir em conjunto com o espectador imaginado para quem fazemos o filme, nem tudo está perdido. Mesmo Fritz Lang, quando foi para a América e deixou para trás a Alemanha e aquele regime abominável, continuou a filmar com a esperança de que um dia as coisas renascessem. Os seres humanos são como a Fénix, renascem sempre das cinzas. Isso que diz da decepção é verdade, mas ao mesmo tempo há um sentimento de partilha, a noção de que há alguém do outro lado. As obras de Gogol são um pesadelo, como “As Almas Mortas”; mas são dirigidas a alguém que ainda não é um monstro. Esta partilha introduz o optimismo em qualquer obra. O que eu detesto é que a decepção deixe de ser uma forma de elegância, como em certos filmes que se limitam a ser desagradáveis. E aí é que já não há esperança, nem ninguém com quem falar.

Nos seus filmes nunca há monstros…

Pois não há. O que é interessante observar, mesmo nas mais duras circunstâncias da vida, é o modo como as pessoas subsistem.

…e até há uma relação de troca muito curiosa: tiram qualquer coisa ao espectador, um pouco de esperança talvez, mas oferecem sempre possibilidades de prazer, às vezes simplicíssimas. Uma espécie de pessimismo hedonista, que é uma expressão que talvez resuma a “filosofia” subjacente à sua obra…

Não tem que pôr aspas na filosofia. Cada um de nós, pouco importa o ofício que pratique, se se põe a reflectir sobre os encontros e as encruzilhadas da vida, mergulha forçosamente na metafísica. Eu o que eu faço, e é o que você faz ao estar aqui a interrogar-me. Mas daí passa-se a outra questão: “como formular, como fazer?”. No cinema isto é muito importante.

Provavelmente é mesmo o mais importante.

Encontrar uma forma para o pensamento, encontrar uma maneira que nos dê as maiores garantias de sermos compreendidos. É preciso ser-se muito vigilante, escrupuloso e severo na escolha dos meios de expressão. Pode-me acontecer ver o mesmo filme na televisão duas vezes, com pouco tempo de diferença, e não reconhecer que é o mesmo. Quer dizer que é um filme sem forma, porque esta não se esquece. Vê-se uma vez o “L’Atalante” do Jean Vigo e não se esquece, há uma forma tão justa que nos passa a acompanhar. Vi pela primeira vez a “Estrada do Tabaco” (John Ford) há vinte anos e não voltei a revê-lo, mas nem preciso, o filme acompanha-me. É uma forma que se transformou em pensamento.

Sente-se compreendido? Sempre se sentiu, ou em certas alturas não?

Isso é outra questão. Mesmo o melhor contador do mundo precisa, para que a sua história seja compreendida, que o interlocutor esteja pronto. Se um espectador não tem as suas ideias, se não reflectiu sobre as tristezas da vida, até pode gostar do filme, mas não o compreenderá.

Quando passou a filmar em França sentiu alguma necessidade de mudar alguma coisa na sua forma de expressão?

Não. Herdámos uma linguagem, a linguagem do cinema, sofisticada e resistente. Já temos a experiência suficiente para podermos usar todo o arsenal de recursos expressivos que ela põe à nossa disposição. Foi o que herdámos de Griffith, de Méliès, de Dovjenko, de Barnet, ou de um filme como “Un Chien Andalou”.

Falou de Boris Barnet, costuma dizer que é o seu cineasta preferido…

Barnet? Costumo fazer-lhe propaganda porque é raro encontrar quem o tenha visto. Um cineasta brilhante.

É, conscientemente, uma influência sua? Por alguns momentos de alguns filmes, pelo tom de outros, dir-se-ia que sim.

Devo dizer que não me sinto nada incomodado por partilhar um estilo ou maneira de pensar com este ou com aquele. Mas fazer citações é que não. Para procurar citações nos meus filmes mais vale ir ao Eclesiastes, ou aos grandes pintores, Vermeer, van Eyck, Giotto, aos bizantinos. Aos cineastas não.

“Era uma vez um Melro Cantor” (1970), por exemplo. Não tem citações, mas há um espírito aproximável ao de Barnet, com a busca de fugas constantes ao que é, efectivamente, a realidade prosaica e quotidiana.

Os universos tocam-se, os artistas encontram muitas vezes soluções semelhantes para problemas semelhantes, mesmo que vivam em épocas distintas e sítios distintos. Entre Byron e Pushkin o universo é o mesmo. Uma coisa em que Barnet foi conscientemente importante para mim foi no facto de se furtar a fazer filmes de propaganda. Foi por isso, aliás, que acabaram com a carreira dele. Eu também nunca quis fazer filmes de propaganda e nunca os fiz. Podem dizer que fiz filmes maus, mas não podem dizer que alguma vez tenha feito propaganda.

Há uma presença constante da Geórgia nos seus filmes, seja de modo expresso como em “Brigands” seja por pinceladas como em “Lundi Matin”, ou na espécie de espelho que foi criar em África, em “E Fez-se Luz”. Mas o seu maior mergulho na cultura e na tradição do seu país foi em documentários, como “Velhas Canções Georgianas”, em 1968, e mais recentemente em “Seule, Geórgie” , de 1994. Nunca sentiu vontade de voltar, décadas passadas, às pessoas e aos lugares do filme de 1968?

Esse filme foi proibido, como os outros. Foi realizado em plena vigência do poder soviético mas, se reparar, não há no filme o mais pequeno sinal da existência desse poder. Absolutamente nada, é como se aquela parte da Geórgia nunca tivesse feito parte da URSS. Foi por isso que o proibiram. Os políticos podem suportar tudo menos uma coisa: que os ignorem. Ficam vexados (risos). Mas é um retrato da Geórgia que me era querida, numa altura em que ninguém se ocupava do folclore nem das tradições. Não volto lá porque é como diz o provérbio: não se mergulha duas vezes na mesma água do rio. Já nada daquilo existe, as pessoas já não têm o mesmo olhar, já nem a maneira de beber é a mesma.

Mas de qualquer modo aquelas velhas canções, as polifonias, a música, são presenças constantes em praticamente todos os seus filmes. Mesmo quando geograficamente se está longe da Geórgia, como em “Segunda de Manhã”, onde há uma sequência inteira com elas.

Sempre achei que a música é uma maneira de pôr as coisas no seu lugar. Aliás nos meus filmes a música tem sempre um lugar, vem de dentro do filme. É um modo de restituir o fluxo da vida. No fim de “Segunda de Manhã” aparece o miudo que vem tocar piano. É uma maneira de dizer que a vida vai continuar.

Vai ao cinema com regularidade?

Eu não, não tenho paciência, saio sempre deprimido. Tenho um amigo, Jacques Rivette, que vai religiosamente seis vezes por semana ao cinema. Vê tudo, mesmo o que já sabe que não presta. Há uns tempos ligou-me, tinha acabado de sair do “Astérix”: “Otar, vê aí no jornal onde é que está o Straub porque vim do Astérix e tenho que ir lavar os olhos” (risos).

LMO

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O SR HULOT CHEGA À CIDADE


O MEU TIO / MON ONCLE
De Jacques Tati

Quatro anos depois da reposição de “Playtime”, eis Jacques Tati de novo nas salas comerciais: “O Meu Tio”, de 1958. Como noutras ocasiões é imprescindível louvar a reposição, tanto mais que, apesar de alguns sinais positivos nos últimos anos, em Portugal ainda não se recuperou um ritmo regular para as reposições de títulos antigos – e isto anda tão fraquinho que bem podia haver uma por semana.
“O Meu Tio”, sem chegar ao extremo de “Playtime” (que, recorde-se, constituiu um tal flop que Tati passou o resto da vida a pagar dívidas), também se trata de um filme muito mais apreciado a posteriori do que pelos seus contemporâneos. Menos porque os seus contemporâneos fossem cegos ou idiotas do que pelo dimensão “em construção” da obra do cineasta francês, sobretudo até “Playtime”. De “Há Festa na Aldeia”, ainda nos anos 40, a “Playtime”, em 1967, há uma progressão lógica, constante (e ao mesmo tempo surpreendente), que só fica perfeitamente iluminada quando se chega ao fim do ciclo. O futuro aclara o passado, como é costume no cinema, e “Playtime” é o “farol” cuja luz atribui à obra de Tati, aos filmes anteriores como aos (poucos) filmes posteriores, o seu derradeiro e mais unificador sentido.

O que é particularmente verdade no caso de “O Meu Tio”, sobretudo por nele se começarem a vislumbrar os primeiros sinais do que Tati tentaria em “Playtime”. Há alguma tendência, por isso, para considerar “O Meu Tio” como uma espécie de “filme-etapa”, um borrão, um balão de ensaio, onde se deve valorizar acima de tudo o que já aponta para o filme de 1967. Que “O Meu Tio” é um “filme-etapa”, certamente, mas no sentido em que são todos os filmes de Tati vistos no contexto da totalidade da obra. E, dada a posição “axial” que ocupa nesse contexto, “O Meu Tio” até é um filme onde o passado, a obra precedente, conta tanto como o futuro e a obra posterior.
É o filme da entrada na cidade, para o pôr assim simplesmente. “Há Festa na Aldeia” e “As Férias do Senhor Hulot” eram filmes de campo, e se a cidade já aparecia no segundo através dos veraneantes citadinos ainda se relevava apenas pela sua matéria humana e social, como conjunto de hábitos, tiques e idiossincrasias das classes médias urbanas. “O Meu Tio” introduz a cidade como cenário, não na forma “total” a que Tati chegaria em “Playtime” mas, um passo de cada vez, através do reduto doméstico – a casa da família Arpel, cujos mobiliário e “gadgets” correspondem a uma primeira instância da impressão de uma ordem (que se pretende) “mecânica”, e que Tati associa ao espaço urbano. Sublinhando o movimento que é o efectuado pelo próprio Tati do campo para a cidade, a família Arpel podia ser uma das famílias de “As Férias do Sr Hulot” uma vez regressada a casa, e há neles, nos Arpel, uma “plenitude” de personagens que se tornará impossível no universo pulverizado e desconjuntado de “Playtime”.
Esse movimento campo/cidade é marcado ainda de outra maneira. Há duas cidades em “O Meu Tio”, a antiga (de onde emerge Hulot), rústica, “popular”, e a moderna (onde vivem os Arpel), sofisticada, “elitista”. A primeira é uma espécie de “persistência” do campo e da ruralidade, uma aldeia em ponto grande, a segunda um espaço de onde qualquer memória desse (ou doutro) tipo foi apagada, visto que só existe o “contemporâneo” e o “moderno”. E este, de certa maneira, é o confronto essencial de “O Meu Tio”, e um dos seus principais conflitos “poéticos” (o outro, obviamente, é de carácter antropológico mais puro e mais abstracto: os humanos em ambiente mecanizado, surpreendidos pela teimosa persistência da sua humanidade). Embora as duas cidades possam ser unidas por um movimento de câmara, não há verdadeira comunicação nem circulação, são sempre dois mundos distintos, estanques, um mundo em vias de ser apagado pelo outro. Os únicos que circulam e passam à vontade de um mundo para o outro são Hulot, agente do caos, e um grupo de miudos e de cães que periodicamente mobilizam a câmara de Tati ou lhes cruzam os enquadramentos. Hulot, as crianças e os animais: em “O Meu Tio” equiparam-se, são uma espécie de memória, uma lembrança de uma liberdade e de uma vida “antigas”. Que aqui ainda têm um “décor” (espécie de evocação neo-realista, nalguns planos singularmente desolada) mas cujos equivalentes em “Playtime” (as floristas, os pedreiros) já não terão, remetidos para cantos e esquinas da grande paisagem urbana.

Entre a nostalgia e uma aceitação mais ou menos melancólica do “presente” nasce o magistral burlesco de “O Meu Tio”. A desarrumação da ordem, a orquestração da desordem. Do “gag” minimalista ao maximalista, “O Meu Tio” contém alguns dos mais clássicos momentos do humor “tatiano”. É começar a contá-los. Não há nada de remotamente parecido com isto em lado nenhum, o burlesco (e toda a comédia, se calhar) é uma tradição morta.

LMO

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Young Mr Lincoln


Young Mr Lincoln, um dos três filmes que Ford realizou em 1939, “desoculta” Abraham Lincoln – que no primeiro plano em que aparece sai da sombra para a luz, com roupas de camponês, homem do povo como qualquer outro, e no último atravessa a colina e a tempestade rumo ao seu destino, ser Abraham Lincoln. Filme de sacralização de um mito fundamental da América, não é um filme histórico, é um filme religioso (como Eisenstein, que na URSS estava encarregue de sacralizar a Revolução, bem percebeu e confessadamente invejou). A História só entra na derradeira elipse, criada pelo raccord entre a saida de campo de Lincoln e os planos da célebre estátua em Washington. Por esse buraco (a distância entre o homem e a estátua) passa a história; o filme precede-a, e o que mostra é uma imagem a fazer-se corpo, e um corpo a fazer-se imagem (sublime Henry Fonda, sempre a trabalhar nesta duplicidade). E sublime John Ford, que opera esta passagem numa espécie de parábola mascarada de “drama de tribunal” (com algo de bíblico: uma mãe impelida a escolher qual dos dois filhos mandar para a forca), precedida duma introdução “rural” e formativa onde está talvez a mais desarmante elipse da sua obra (a morte de Anne). Génio absoluto, e medimos as palavras.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Zombies castigadores



TERRA DOS MORTOS /LAND OF THE DEAD
De George Romero

Vivemos todos no mesmo mundo, é um facto; e a maior parte dos realizadores cujos filmes estreiam em Portugal até vivem no mesmo país (os EUA, informação desnecessária). Portanto não espanta (ou espanta que espante) que em determinados períodos se vão descobrindo recorrentemente os mesmos temas, as mesmas preocupações, os mesmos motivos, nos filmes mais díspares e nos realizadores de universos habitualmente mais desencontrados. Abreviando e dizendo de outra maneira mais rápida e sucinta: quatro anos depois, o 11 de Setembro (e o mundo que se lhe seguiu, ou que ele gerou) vai sendo absorvido, “plasmado”, pelo cinema americano, e directamente integrado no tecido narrativo (ou meramente “alusivo”) de inúmeros filmes. É do que o mundo continua a falar, é naturalmente aquilo de que o cinema fala (em particular o americano, historicamente um dos menos “distraidos”, mesmo se os seus espectadores continuam a vê-lo sobretudo para se “distrairem”).

Vem isto a propósito de “Terra dos Mortos”, o filme que assinala o regresso de George Romero, o homem que dedicou uma vida e obra aos “zombies”, e praticamente os inventou na sua encarnação “moderna” (no célebre “A Noite dos Mortos Vivos”, de 1968, matriz para todo o filme com mortos-vivos, pelo menos até à variação delicodoce de “O Sexto Sentido”). Os “zombies” de Romero nunca foram inócuos, não haveriam de ser estes a sê-lo: “Terra dos Mortos” (título devastador) traz carradas de “comentário” ao mundo contemporâneo, projecta-o num caos pré-apocalíptico, esgueira-se por entre um “labirinto moral” nada binário (são pelo menos quatro as “categorias” das personagens, não há apenas “bons” e “maus”), e no fim, se não celebra “o fim do mundo tal qual o conhecemos”, tem pelo menos uma relação pacificada com ele (o fim do mundo) – belíssimo último plano, onde o fogo de artifício no céu nocturno acompanha as colunas de “zombies” errantes. E pelo meio alude, farta-se de aludir, alude à brava: desde um atentado a umas conspícuas “torres” à sugestão das cidades de um futuro próximo serem como “condomínios privados”, passando pela menção, tintim por tintim, de uma das frases-chave da “novilíngua” pós-2001: “não negociamos com terroristas” (a frase, honni soit qui mal y pense, é dita pelo vilão-mor do filme, encarnado por Dennis Hopper, que acrescenta: “temos outros meios”). É precisamente esse “condomínio privado”, um dos últimos à face da Terra, que se encontra ameaçado pelas hordas de “zombies” em que se transformou a maior parte da população do planeta – cabe um grupo de “operacionais” lidar com a situação, mas pelo meio há renegados oportunistas e interesses obscuros em jogo, que baralham consideravelmente os dados do problema.


Tudo isto num registo que tresanda a série B por todos os poros, seco e estilizado, quase completamente nocturno, personagens definidas apenas por uns quantos traços, nenhum rodriguinho, nada de informação inútil. Entra-se de “chapa” no filme, que parece que começa a meio de uma sequência – e essa é uma boa medida da “condensação” operada por Romero (que monta, ou faz alguém montar por ele, extraordinariamente bem). E num universo que tem algo a ver com o de John Carpenter, é impressão que se acentua com o desenrolar do filme (e “Terra dos Mortos” seria um bom parceiro para filmes como “Fuga de Los Angeles” ou “Os Fantasmas de Marte”). Romero não é um esteta tão acabado como Carpenter, não tem tanto sentido de humor como ele, nem presta tanta atenção à “iconografia” (ou “clastia”); mas partilha com Carpenter a preocupação de conciliar um individualismo acirrado e um elementar “sentido de decência”, partilha a desconfiança “institucional”, e sobretudo partilha uma espécie de puritanismo “castigador” (como é de todo o bom puritano), que acha que perante a corrupção mais vale arrasar e dar de novo – que é como quem diz que, tirando isto ou pondo aquilo, o mundo tem mais ou menos aquilo que merece. Entre o clarão do fogo de artifício final de “Terra dos Mortos” e o clarão do isqueiro de Snake Plissken no final de “Fuga de Los Angeles” não vai assim uma distância tão grande (e a velocidade da luz, aliás, é o que sabemos).


LMO
Adenda: Snake Plissken é um homem demasiado arcaico para usar isqueiros. Portanto, onde se lê "isqueiro" leia-se "fósforo". Gaffe corrigida não sei quantos anos depois.